bastidoresMAR17 A

 

Em dezembro de 2003, no México, peguei as malas e fui morar em Barcelona. Tinha ganho uma bolsa da União Europeia para estudar um doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada. Planejava ficar dois anos. Máximo três. Mas os planos mudaram um pouco: até hoje, fevereiro de 2017, ainda não voltei.

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Fui morar num apartamento com dois argentinos. Os colegas do doutorado eram peruanos, colombianos, brasileiros, mexicanos e catalães. Na metade das festas, eu ia comprar mais vinho e cerveja nas lojas dos paquistaneses. E, quando precisava de alguma coisa aleatória (um caderno, um parafuso, uma bola de pingue-pongue), era só caminhar até o chinês da esquina. As praças do bairro estavam cheias de okupas italianos, alemães, franceses (descendentes dos famosos squatters ingleses). Cheios, eles, de cachorros. E logo eu conheci uma brasileira. (Típico.) Fiquei com ela. E fiquei em Barcelona.

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Passaram os anos e eu escrevi três romances mexicanos: Festa no covil, Se vivêssemos em um lugar normal e Te vendo um cachorro. O tema deles era o México. Os personagens eram mexicanos. O narrador também. O cenário, o contexto, o pano de fundo, tudo era mexicano. Mas, quando ia começar escrever meu quarto livro, 11 anos depois de deixar o México, eu não era mais só mexicano. E isso começou a ser um problema. De repente, achava que continuar escrevendo a partir dessa perspectiva era incongruente. Que não era honesto. Eu tinha virado muitas outras coisas: expatriado, imigrante, pai de dois brasileirinhos que também eram mexicanos, mas, principalmente, catalães. Eu precisava achar outro ponto de vista.

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Além do mais, nesses 10 anos, o México também tinha mudado. O México não era mais aquele país onde eu morava, aquela pátria que eu conhecia. Dentro de mim, o México estava deixando de ser um espaço real de interação para virar um cantinho de lembranças. Um lugar, até, imaginário. Cada vez que eu colocava a bunda na cadeira para escrever, sentia que o cenário do enredo escorregava entre minhas mãos. Eu pressentia o perigo iminente de tornar folclórico, exótico, aquele que tinha sido meu lar.

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Li nos cadernos do artista mexicano Gabriel Orozco: “Não gosto de ir muito longe de casa com o objetivo de fazer uma obra de arte. Eu odeio o exótico nesse sentido. Quero que minha arte esteja perto de mim e eu perto do que me rodeia”.

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Fui almoçar com Jordi Soler, escritor mexicano que mora, como eu, há muito tempo em Barcelona. Contei da crise de escrita que eu estava enfrentando. Falei que estava cogitando localizar meu novo romance em Barcelona. Que eu queria escrever sobre o que ficava perto de mim. Que estava cansado de narrar desde o afastamento, desde a distância, que gostaria de experimentar, na cotidianidade, aquilo sobre o que estava escrevendo. Mas que eu sentia pudor (vergonha, constrangimento). Que não tinha certeza de estar legitimado para escrever sobre Barcelona. Aí, Jordi falou: – A gente também é do lugar onde os filhos crescem.

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Mas, peraí: eu não ia deixar de ser um escritor mexicano, isso era impossível. Aliás, eu não queria. Eu queria era incorporar na minha escrita outras influências, outras tradições literárias, outras maneiras de falar o espanhol, outros sotaques, outros olhares. Eu queria que minha perspectiva e meu ponto de vista como pessoa no mundo fossem congruentes com os dos meus narradores. Eu queria era fazer uma literatura mestiça. A literatura da Barcelona da imigração, uma literatura da miscigenação.

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Criei um personagem chamado Juan Pablo Villalobos, mexicano. Mandei-o morar em Barcelona para fazer um doutorado em Teoria literária e Literatura Comparada. Imaginei que ele alugava um quarto num apartamento de dois argentinos. E logo alterei a pergunta clássica com a que começa toda ficção. Em vez de me perguntar “o que aconteceria se...”, questionei-me: “o que teria acontecido se...”.

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O que teria acontecido se eu tivesse caído nas mãos de uma rede criminal transnacional, quando eu fui morar em Barcelona?

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O resultado é No voy a pedirle a nadie que me crea. Um romance policial misturado com autoficção sobre os limites do realismo. Um romance humorístico que contém uma reflexão sobre os limites do humor. Um romance com personagens mexicanos, mas também catalães, argentinos, italianos, chineses ou paquistaneses. Um romance mexicano, sim, mas também um romance mestiço, global, cosmopolita. E, para mim, o mais importante: um romance com o qual trilhei um caminho para continuar a escrever. A edição brasileira de No voy a pedirle a nadie que me crea será publicada pela Companhia das Letras em outubro de 2017, com tradução de Sérgio Molina. No voy a pedirle a nadie que me crea ganhou o Prêmio Herralde 2016, o mesmo prêmio que ganharam, entre outros, Os detetives selvagens de Roberto Bolaño, O mal de Montano de Enrique Vila-Matas e O passado de Alan Pauls.