Inúmeros fatores contribuíram para a escrita do Livro das postagens.
A impossibilidade de seguir escrevendo como antes, por exemplo.
A impossibilidade de combinar a necessária sensação de “aventura na escrita” com qualquer pré-formatado. Ou uma ou outra.
Exemplo: quando se vai escrever um soneto, antes mesmo de escrever a primeira palavra do poema, já se sabe quando se vai terminá-lo: no décimo quarto verso.
Para mim é impossível começar um poema sabendo quando vou terminá-lo.
Pode durar uma linha ou mil linhas, mas não posso partir do pressuposto de que sei quando ele chegará ao fim.
É como um novo amor: durará até o fim da tarde, da noite, do ano, do século, da vida?
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Outro formato incômodo: o formato-canção.
Aquele poema que dura um pedaço razoável de página como uma canção dura em média 3 minutos e meio.
E, como a canção, enfeixa um sentimento e uma voz única.
É o formato mais comercial e de maior sucesso.
Mas há tempos deixou de ser qualquer outra coisa além de “bonito”, até “lindo”, pero inútil. Ao menos para o que eu quero da poesia.
Mas crescemos com esse formato-canção. Aprendemos os primeiros versos através da canção popular.
Penso: se tivéssemos uma democracia musical nos veículos de comunicação, que incluísse, além das canções, belíssimas, a música erudita, tão cheia de outras possibilidades, será que não arrebentaríamos esse formato?
Em lugar da página e da voz única que conta uma história, ou até duas vozes em diálogo, mas contando uma mesma história, as muitas páginas em que um “tema” passasse de uma voz para outra, transformado, como um tema musical passa de um oboé para um piano. Sem falar que os violinos e os pianos estarão fazendo outras coisas completamente diversas na obra.
Em lugar daquela sensação única do formato-canção: um fluxo onde de repente o tom é grave, depois allegro, depois lento, depois prestíssimo...
É só um exemplo.
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Também pode ser pensada, essa fuga do pré-formatado em poesia, como um escrever na mesa-de-montagem.
O importante é que, uma vez conquistada essa vitória sobre o não fazer, esses elementos não sejam mais usados. O poema-que-não-pode-ser-senão-em-fuga, já se disse.
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Claro que nem todo mundo DEVE fazer assim, e que há poesia boa sendo feita nos velhos formatos. Mas quase já não me interessa. Para mim, aquilo morreu, e, como diz Walter Benjamin, é preciso saudar com alegria essa morte da arte burguesa e acomodada.
Concordo com Rancière quando diz que a literatura tal como vem sendo repetida (em vez de produzida) há tempos, não inventa mais nada, não inventa “categorias de decifração da experiência comum, como ela fez até meados do século vinte”.
Mais do que mais-um-belo-poema-de-amor-à-moda-antiga, mais do que o “Oh-Que-Domínio-Técnico-Da-Língua-E-Do-Verso-Tem-Esse-Poeta!”, quero ver gente tateando no escuro, quero tatear no escuro, errando, tentando, rosnando outras novas formas de “narratividade, de expressividade e de inteligibilidade”...
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É claro que isso tudo não nasce assim, de repente, do nada, da mera vontade de poetas como eu, como Ricardo Aleixo, como Angélica Freitas, como Reuben da Rocha, como Fabiano Calixto, como Nathalie Quintane, como Micheliny Verunschk, como tantos outros que vejo meio que acenando uns para os outros de algum ponto de sua viagem pessoal e intransferível.
Nasce da consciência que cada um tem do que é esse “mundo sitiado”, para usar o belo título do livro do Murilo Marcondes de Moura sobre poesia em tempos de guerra.
Da consciência de que escrever poemas está mais perto de escrever ensaios sobre a vida danificada do que dar à luz mais um alexandrino com referência mitológica.
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Também vejo que essa participação política tem trazido à cena uma certa retórica, uma certa pose, um escrever poemas como escoteiro canta hino. Coisa que, sobre ser ridícula, mostra como se ama o velho mundo, que cai de podre. Como se teme o que vem por aí.
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Num plano concreto: escrevi este livro numa resma de papel chamex. Coloquei as 500 folhas em cima da mesa e comecei a escrever com uma caneta barata, de camelô, que aprecio muito. Usei muitas vozes recebidas por e-mail, inbox etc., mas há falsas vozes íntimas. Um trecho que parece inbox de namorada é na verdade um trecho de Ana Cristina Cesar.
O processo de montagem foi muito godardiano.
Enquanto escrevia o livro, assistia a filmes de Godard no modo repeat.
Filme-socialismo vi umas quatro vezes.
Nossa música, mais de dez.
Etc.
Ouvia a música de Luciano Berio, principalmente suas peças para coro.
Mas também a intervenção que fez sobre fragmentos da Décima Sinfonia (inacabada) de Schubert: Rendering.
E sempre atento a essa forma coral estranha, que às vezes amo, às vezes odeio, do Facebook.
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Num plano ainda concreto: ao escrever este Livro das postagens, colei na parede em frente à mesa de trabalho, mesa de montagem, as perguntas que o poeta norte-americano Kenneth Koch se fazia para aprovar (ou não) um poema que tivesse acabado de escrever:
“Diz algo que eu desconhecia antes de me sentar para o escrever? Revela algo sobre mim que eu desejo que ninguém saiba? Haverá nele efeitos baratos pedindo ilegitimamente a atenção? Exibições, pseudoprofundidade, ou outros lixos “literários”, “beija-me-que-eu-sou-poético”? É o tipo de poema que eu invejaria se outro o pudesse escrever? Ficaria feliz em ir para o céu com isto bordado no meu casaco angelical como visto de entrada?”