Há uma caixa de papelão sob a minha escrivaninha. Fuço nela até encontrar um caderno de capa branca, de 27x19cm, com 195 folhas pautadas. Está dentro de um envelope enorme no qual se lê: “Abaixo do paraíso – originais”. O envelope está abarrotado de outros papéis, manuscritos e impressos, e todas essas coisas correspondem aos dois anos que passei escrevendo Abaixo do paraíso, meu quinto romance, lançado há poucos meses pela editora Rocco.
Entre janeiro de 2013 e janeiro de 2015, muito embora tenha feito várias outras coisas, profissionalmente e não, posso dizer que a maior parte da minha atenção foi absorvida pela escrita do romance. Não é um processo linear. Nunca é. Há avanços e recuos, dias bons e dias ruins, períodos produtivos alternando-se com semanas estéreis, e até momentos em que cogito comprar o Jornal dos Concursos e ver o que há lá fora, no “mundo real” – não há nada; não para mim, pelo menos.
No caderno, há anotações e esboços de várias passagens. As anotações dizem respeito a um tatear. Quando as faço, ainda não sei direito como será o romance. Elas são imprescindíveis na medida em que, sempre, só descubro que livro vou escrever ao colocar as ideias iniciais, por mais vagas que sejam, assim por escrito. Com o tempo, a trama, os personagens, o tom, tudo adquire contornos mais precisos, e então me ponho a escrever o romance propriamente dito.
O processo costuma ser longo, até por essa mania de escrever à mão (só passo ao computador após terminar uma primeira versão), mas não sei se conseguiria fazer de outro jeito. Ele exige uma desaceleração e uma desconexão que, para um escritor vivendo no acelerado e hiperconectado século XXI, são muito bem-vindas, na minha opinião.
Algo que salta aos olhos quando folheio os cadernos nos quais comecei a escrita de todos os meus livros é o quanto as premissas originais, as primeiras ideias, vão pelos ares à medida que o trabalho se desenvolve. Por exemplo: a sinopse que tracei no dia 31 de janeiro de 2013 sob o título "Abaixo do paraíso" não tem quase nada a ver com o romance homônimo que chegou às livrarias mais de três anos depois. Era uma história bastante obscura, que envolvia parricídio, fuga, abandono, e se passava na zona rural de Goiás, meu estado natal. Uma história que talvez eu ainda escreva. Mas, depois, ao colocar o ponto final no livro, tinha em mãos algo bem diferente, embora ainda envolvesse uma fuga e se situasse, em parte, no interior goiano. Em vez de um sujeito planejando e executando o assassinato do pai, as sucessivas reescritas transformaram o protagonista em alguém acolhido na casa onde cresceu, lidando com um retorno nem sempre saudável, mas dolorosamente necessário ao seio familiar.
Cristiano, o protagonista, é um criminoso, alguém que passou anos a serviço de políticos corruptos, desempenhando tarefas ilícitas. Ele é mais uma peça na engrenagem imunda da nossa República. A certa altura, perde a cabeça ao executar um servicinho rotineiro e precisa fugir. Longe de acelerar a narrativa, a fuga serve como um ponto de inflexão. A maior dificuldade que tive foi proceder essa mudança de tom sem quebrar o romance ao meio.
Nas primeiras versões, tudo era abrupto e eu não conseguia suavizar a passagem de uma coisa à outra. Foram meses testando novas estruturações, invertendo capítulos, alterando a ordem dos acontecimentos, até que um dia peguei aquele caderno em que começara tudo e me deparei com uma anotação de 17 de setembro de 2013: “A ideia de um purgatório narrativo. Este lugar, os ‘entremeios’. Encontrar um modo de narrar sempre a uma certa ‘altura’; fosse um filme, seria inteirinho de planos médios ou americanos. Nada de planos gerais ou closes. Desenvolver mais o capítulo de abertura. Tornar isso um método ou maneira de enfocar ações e personagens: capítulos longos, amplamente descritivos, com diálogos centrais, isto é, que resumam o que está em jogo (...), o que virá”.
Então, ocorreu-me que a chave sempre esteve ali: Cristiano. Ele seria a “altura” a me orientar. Se eu compaginasse a narrativa ao personagem, sem abrir mão da terceira pessoa, quaisquer mudanças de ritmo poderiam ser melhor trabalhadas. Reescrevi com isso em mente. E, em meados de 2014, quase um ano e meio depois de começar, encontrei o romance que buscava.
A fuga como ponto de inflexão
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- Categoria: Bastidores
- Escrito por André de Leones