Mar no fundo de cada sonho1 A

no caos, virei mais uma esquina, em busca de diálogo. por um determinado período entrevistei escritores, muitos deles publicando o primeiro livro. após a leitura dos títulos, eu marcava o encontro com o autor e gravava a entrevista num gravador de fita. era o ano de dois mil e seis e estávamos engatinhando do analógico para o digital. tenho guardado em caixas de all star conversas sobre planetas inventados com bruna beber, alice sant’anna, vivine mosé, joão paulo cuenca, cecilia giannetti, michel melamed, rodrigo de souza leão... e muitos outros pares. depois passei a registrar a conversa em vídeo para largar as imagens no calçadão virtual. em cada conversa, na minha curiosidade de neófito, sempre perguntava sobre o processo de criação: como nasce um livro? motivado pela gestação do meu primeiro livro de poemas na ocasião, os encontros multiplicaram-se: num café, num bar, num teatro ou numa livraria. as respostas eram as mais variadas, cada um em busca do seu caminho, do compasso e de liberdade na escrita. a conclusão, um tanto óbvia: a criação é um processo de construção de vida inteira. como cada um vai fazer isso é que são elas. recém-publicado meu terceiro livro de poemas (“há um mar no fundo de cada sonho”) percebo o quanto foi diferente a criação dele em comparação com o primeiro livro (vinis mofados) e com o segundo (poemas tirados de notícias de jornal). não teria como ser igual, mudamos a todo instante, e esses processos mudam conosco a cada página escrita, a cada poema libertado para o mundo. embora o silêncio esteja presente em tudo que escrevo, tenho consciência de que neste último livro a relação foi potencializada. um mergulho profundo nas cicatrizes diárias, no silêncio apaziguador da meditação e nos encantamentos dos encontros. fiquei num jejum de cinco anos entre o segundo e o terceiro livro, mas não sem escrever poemas. com frequência fazia anotações de versos e ideias em pedaços de papel e guardanapos de café, até passar para o computador e trabalhar o poema à exaustão, falar em voz alta, ouvi-lo. nesse tempo estava tratando de viver bem e lidar com todas as surpresas que me ocorreram, que mudaram não somente minha relação com a vida, mas principalmente com minha escrita. eu me sentiria um impostor se tivesse de omitir em minha literatura algum assunto pelo tabu, ou receio de preconceito. a vida, e principalmente a poesia, é o lugar da liberdade. entonces, fiz um mergulho profundo e silencioso. acredito na escrita que se faz através da leitura, da intertextualidade, e também através da contaminação com o que ocorre com o outro. o poeta deve virar a esquina. hoje, em dois mil e dezesseis, prefiro uma esquina que me leve à mata, ao rio, à cachoeira, ao encontro com os povos originários do xingu – que recentemente tive a licença e alegria de conhecer. estou em conexão com o pensamento do poeta roberto piva que acreditava na “poesia como uma forma de reenergizar o planeta”, como relembrou danilo monteiro em sua leitura. acredito no poder da escrita, da palavra. talvez isso me distancie da novíssima produção de poesia contemporânea, com seu pensamento de uma escrita criativa, verborrágica e hermética, feita para iniciados. me aproximo mais das rezas dos pajés, dos cantos xamãs, dos gritos dos indígenas tão violentados no brasil. atento aos povos originários que cultivam o selvagem e o sagrado, com sua “poesia xamânica bioalquímica”: krenak, huni kuin, fulni ô, kuikuro, kalapalo e tantos outras etnias que ainda resistem cheias de beleza,em que o tempo é arte. prefiro essa relação mitológica com o tempo, a metafísica das folhas e raízes. quero a poesia defendida nas ideias pivianas como uma solução, uma vacina, que “impede que as pessoas parem de sonhar”. ainda é possível acreditar na poesia como chave do sonho? sim: há (sempre) um mar no fundo de cada sonho. se não for desse jeito, qual o sentido na criação? a poesia apesar de. apesar dos golpistas, dos corruptos, dos preconceituosos, dos racistas, dos homofóbicos. apesar de tudo, fico com a poesia, a linguagem e a criação. a poesia como reconstrução da vida, tão (des)necessária e fundamental.