Eu sempre me exercitei na prosa, com contos, narrativas curtas e até com um romance escrito ainda na infância. Mas por muito tempo essa minha aproximação foi isso mesmo, um exercício, um acercamento dos elementos de um gênero da escrita não natural para mim, no sentido do que é natural, sob a minha perspectiva de poeta. Quando cheguei em 2004 a São Paulo, fui morar com uma amiga que, dias depois da minha chegada iria passar 40 dias na Europa. Quarenta dias em que eu ficaria sozinha numa cidade praticamente desconhecida: um pequeno deserto. Poucos dias antes dessa viagem, ela me falou do suicídio da tia, décadas antes, em Arcoverde, antes mesmo que eu ou ela tivéssemos nascido. Nessa história, havia uma imagem forte, a da mãe da moça, avó de minha amiga, vestindo-a num hábito de santa para o enterro. Ela me disse: “Aí todo mundo foi ver o enterro da santa”. Essa cena poderosa me moveu e me fez pensar: há, aí, uma história a ser contada.
De início, percebi que uma narrativa breve não poderia dar conta daquilo que pedia para ser contado, e, então, me vi, espremida, numa esquina: conto nenhum seria capaz de conter o que naquele momento se apresentava para mim. Obviamente,a imagem da moça suicida funcionou como um motivo, um flash, uma coisa poderosa a abrir outras cenas, caminhos, paisagens. Me era exigido mais. E, assim, abracei o desafio que era, enfim, escrever algo de mais fôlego, um romance, o primeiro.
Desde os momentos iniciais, eu tinha o miolo da narrativa resolvido. Eu sabia toda a trama e o seu desenrolar. Mas precisava aprender a contar essa história. A contar do modo que ela me pedia, longa e compassadamente. Dessa forma, os anos seguintes foram de aprendizado, um tempo de conformar desejo, técnica, e também desalento. No meio disso tudo, a vida: casamento, nascimento dos filhos, um mestrado, a morte do meu pai, a perda de um amigo pela escolha do suicídio. Todos esses fatos concorreram para que a escrita do romance ora vacilasse, ora avançasse. Diálogos com outros escritores como Marcelino Freire e Raimundo Carrero, também. De Carrero, veio uma das lições que me tirou de uma certa letargia. Eu havia escrito quatro capítulos e gravitava incansavelmente em torno deles, corrigindo, reescrevendo, lapidando. Escrevi um e-mail a Carrero e disse mais ou menos, “olha, tem quatro capítulos aí de um romance que tenho na cabeça, mas não consigo sair disso, escrevo, reescrevo, mas não avanço”. Ele leu, pontuou algumas observações e disse: “Escreva. Não deixe de escrever. Deixe para lapidar o texto depois. Não pare de escrever”. E foi isso que fiz. Mesmo que o que eu escrevesse eu achasse muito ruim, eu continuava. Mesmo que depois eu jogasse capítulos inteiros fora, eu não parava. Não por acaso, esse livro só se deu por findo 10 anos depois da faísca inicial, o que me faz tê-lo na conta de “romance de formação”, da minha formação como narradora.
Ao mesmo tempo me descobri uma pesquisadora obsessiva, rizomática, tentacular. E fui de estudos sociológicos à leitura de cartas de suicidas, passando por romances, filmes, e todo material sobre o tema que me caísse em mãos. Por outro lado, a vontade de brincar com os gêneros e fazer um híbrido entre o ensaio e a narrativa foi sendo estruturada a partir da construção do narrador. Houve até quem dissesse ou achasse que o romance fosse um subproduto da minha tese de doutorado, sendo que o tom arrogante e professoral do velho narrador foi totalmente estudado, intencional como tudo, aliás, nessa narrativa. Se há algum subproduto é a tese, que veio depois do romance.
Por outro lado, com a ideia de que o suicida é sempre dito pelo outro (mesmo que deixe carta de despedida), assim como a mulher na literatura ocidental (casos de Capitu e Madame Bovary, só para citar dois exemplos), pensei na minha personagem central exercendo o que chamo de “protagonismo descentralizado”, assim Teresa é alguém difuso, pouco apreensível, uma imagem borrada, isso como forma de falar sobre a distância comunicativa fundante que se dá entre o suicida e os vivos, aqueles que ficam. Nesse percurso, ajustei a figura do narrador, um velho machadiano com certo humanismo pessimista de José Saramago. Aliás, quando penso nele, seu rosto é o mesmo do escritor português. Teresa por sua vez, foi criada pensando no papel da mulher na literatura. Como Capitu e Madame Bovary, ela é contada pelo olhar dos outros, e é guiada pelo desejo de poder de todos eles. Silenciada, sem ela, no entanto, não há narrador, não há papa, tampouco há a cidade. Com santa Teresa de Lisieux, ela também é ditada e editada conforme uma pauta moralizante e masculina. Sua ausência é uma presença inquietante e inquietadora. Por fim, conformei ainda esses elementos no caráter fragmentário e polifônico que eu desejava para a história. Penso que a linearidade da narrativa é um elemento a ser dessacralizado. Acredito que a vida é assim, não-linear, fragmentada, e que o protagonismo único e ferrenho é uma ilusão. Assim, tenho exercitado isso nas minhas narrativas e me parece um bom projeto para a prosadora que estou construindo.
Imagens difusas da santa que mora ao lado
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- Categoria: Bastidores
- Escrito por Micheliny Verunschk. Ilustração: Hallina Beltrão