Bastidores MAR A

O Nossa Senhora D’Aqui é parte de uma trajetória que se iniciou lá em 1984, quando tive meu primeiro livro, Estarrecer (poesia), publicado. Então aqui, pensando em retrospectiva, começo lembrando especialmente de uma crítica que recebi em 1997, quando publiquei um livro de contos, o Lição invisível. Na ocasião, o Bernardo Ajzenberg fez uma apreciação do livro num artigo intitulado “Dor e bom humor”, publicado no caderno “Mais!” da Folha de S.Paulo. Os comentários de Ajzenberg, naquele momento, foram essenciais para que eu divisasse o que, em grande medida, acabaria compondo minha expressão literária; no texto, o crítico evidenciou três elementos que marcariam minha produção ficcional: dor, rigor e bom humor. E são esses três “eixos” que permanecem na minha escritura e que seguem como os mais fortes em Nossa Senhora D’Aqui.

Um romance tragicômico – assim defini meu 15º livro, que é o Nossa Senhora D’Aqui. O livro brinca com as noções mais correntes de literatura canônica; por exemplo, ele “adapta” o épico Eneida, de Virgílio, à realidade pós-moderna. Contudo, embora eu tome emprestado uma possível estrutura para o livro, esta é deliberadamente subvertida, uma vez que todo o enredo é reformatado para se passar na estrutura de uma bula de remédio. O resultado: uma epopeia (com sua grandiosidade tradicional) tratada no espaço de uma bula de remédio (com sua funcionalidade e condensação). Dividi o livro em duas partes dispostas como se em espelho; a segunda parte dá sequência, refaz ou desfaz o que foi contado na primeira – esgarçar, contradizer ou até apagar a narrativa através desta técnica especular intenta desestabilizar a expectativa de linearidade.

Inspirada em livros que exploram uma variedade de ações e um rol de personagens aparentemente desconectados e autônomos (pensei, sobretudo, no extraordinário Contos da Cantuária, de Geoffrey Chaucer e, naturalmente, no Ulisses, de James Joyce, que partem de um microcosmo, mas possibilitam a apreensão de um universo maior), fui construindo personagens que vão desde caricaturas coladas à descrição realista até uma caracterização difusa ou até absurda e nonsensical (há trechos, por exemplo, narrados por uma mosca). Esses personagens, mais de cem moradores de um lugar impreciso chamado “Aqui”, contam suas experiências e inexperiências, em flashes de ação ou de reflexão filosófica. São, quase todos eles, patéticos ou tragicômicos, tanto pelas certezas que têm quanto pelas incertezas. Suas histórias são banalíssimas, não há feitos grandiosos nem conquistas importantes, as cenas mostram a fragilidade das relações e das pessoas, desde o tédio e o conformismo às grandes epifanias. Assim, o perfil do herói mítico – aquele “salvador” da comunidade, cujas experiências serão modelo para o homem comum – é subvertido: temos o herói pós-moderno, alguém destituído das proporções heroicas clássicas mas, em contrapartida, livre do peso de ser modelar.

Os personagens do Nossa Senhora D’Aqui, direta ou indiretamente, orbitam ao redor da protagonista Frau Homera Kortmann dos Santos – aquela Grande Avó (ou bisavó) estrangeira que muitos de nós brasileiros temos. A brincadeira, então, é apresentar uma heroína que não é a Grande Mãe e sim uma personagem de menor impacto, mas que interfere na vida dos outros, tanto para o bem como para mal: há personagens que adoram a Frau e outros que foram traumatizados por ela (e como saber o que as pessoas acham de nós?). Uma outra intenção do texto é a de fazer uma homenagem ao povo brasileiro, principalmente do sul do país (a realidade que conheço, já que nasci e moro em Curitiba), que é um maravilhoso amálgama de etnias e tradições tão pulsantes, mas nem sempre devidamente reconhecidas enquanto índices identitários.

Em relação à linguagem, explorei uma marcação de traços linguísticos de cada personagem usando gírias de épocas diferentes, o falar de imigrantes que vieram para o Brasil ou, ainda, calcando certas expressões típicas de um discurso mais empolado. Uma pequena Babel vai se configurando nos textos, gradualmente combinando tons e sonoridades muito diferentes entre si, muitos ruídos, muitos ritmos e misturas.

Enfim, eis os bastidores da confecção de um livro que é para ser, se dei sorte, em alguns momentos divertido. No início do Nossa Senhora D’Aqui deixo uma pista do que está por vir: “Esta narrativa fecunda em incidentes menores é saga banal”. É isso, o livro é uma “epopeia falhada” e nele há apenas fragmentos de aventuras previsíveis, da vida cotidiana de personagens dimensionados entre dor, rigor e bom humor e que, assim, expõem nossa condição de criaturas líquidas e efêmeras.