Este meu quarto romance, como os outros que escrevi, tem sua “biografia”, talvez como a minha própria, com idas e vindas, paradas e voltas. Assim como eu nunca me disse “quero ser escritora”, também nunca me sentei diante de uma mesa me dizendo “quero escrever um romance... agora, vamos ver, sobre o quê?” Todos eles tiveram como ponto de partida algum fato, ou experiências que desencadearam um processo de associações, imaginação, novas percepções, por anos, até se plasmarem num possível romance que fica pedindo para ser escrito.
Há cerca de sete ou oito anos, alguém que organizava uma coletânea de relatos, cujo tema deveria referir-se a distâncias ou viagens, pediu-me um texto de cerca de 20 páginas. Para a andarilha que sempre fui, a proposta era atraente. Busquei matéria-prima na minha memória, inventei mais um bocado, escrevi e enviei, já com esse título, Outros cantos. O organizador, no entanto, decidiu não publicá-lo. Hoje agradeço a não inclusão nessa coletânea, onde ele teria permanecido como um conto e talvez já esquecido.
Então, guardei-o no meu baú de recicláveis. Passados três ou quatro anos, remexendo nos guardados, encontrei-o e reli com olhos de leitora quase isenta, esquecida dos detalhes de conteúdo e forma. Tratava-se do relato de uma mulher, já idosa, que atravessa o Sertão, de ônibus, durante uma noite, e não dorme, observando outros passageiros e o que consegue ver pelas janelas, evocando lembranças de sua primeira inserção no mundo sertanejo, 40 anos antes. Vai ao passado por meio da memória/imaginação e volta ao presente, alternadamente. Aquilo ficou ressoando na minha cabeça, chamando outras imagens, e percebi que podia ser o “primeiro capítulo” de um romance, cuja temática, estrutura e voz narradora já estavam dadas. Comecei a desenvolvê-lo. Como minha rotina é uma sucessão de imprevistos, e meu cotidiano nada tem a ver com o isolar-se longa e “disciplinadamente” num escritório, sou lenta no trabalho braçal de passar o que está na cabeça para o papel, faço isso “quando dá”, em meio a inúmeras tarefas e solicitações da vida doméstica, de meu círculo próximo ou da necessidade de pagar as contas, com traduções, por exemplo.
Em 2012 eu tinha quatro livros inacabados. Outros cantos era um deles. Quarenta dias era outro. Abriu-se então uma seleção para a produção de obras literárias com patrocínio da Petrobras. Inscrevi meus quatro projetos em andamento (lento) e Outros cantos foi selecionado, com mais 16 livros/autores. O processo de contratação com a Petrobras foi devagar e o prazo de um ano só começou a correr a partir de dezembro de 2013. Não se tratava de bolsa, mas sim de patrocínio, com uma quantia a receber só entregando-se o livro pronto e contrato firmado com alguma editora. Pude, porém, arriscar-me a não buscar outro trabalho remunerado e dediquei 2013 a terminar o Quarenta dias, publicado em 2014. Em seguida retomei a escrita e polimento de Outros cantos, entregue à Petrobras e à Alfaguara em dezembro de 2014, mas que só se publica agora, em janeiro de 2016. Com o patrocínio para um livro, fiz dois.
Enquanto eu ia no meu passinho lento, o mundo grande, lá fora, deu imensas voltas. Vários temas que se foram apresentando, de modo mais insistente nesses últimos anos, deram liga com o que eu estava escrevendo. Entre eles, a criação da Comissão da Verdade e a proximidade dos 50 anos do golpe militar trouxeram à tona das nossas lembranças as diferentes formas de resistência à ditadura e os sacrifícios que a repressão infligiu aos que não cederam a ela. Lembramos os nossos mortos, os torturados, os presos, os exilados, os expulsos, os censurados. Mas faltava alguém nessas memórias. Não lembramos o bastante daqueles que optaram por “mergulhar no seio das massas como peixes dentro d’água”, ou “como fermento na massa”, acreditando que a vitória só poderia vir de dentro e de baixo para cima. A invisibilidade era condição para seu sucesso, e invisíveis, ou quase, continuaram. Foram milhares, e cumpriram sua missão no processo que levou ao surgimento de inúmeros movimentos e organizações sindicais e populares, no campo e na cidade, abalando eficazmente a “ordem” estabelecida pelo poder autoritário. Invisíveis, em cada um deles, dores, alegrias, descobertas, assombros e aprendizados. Outros cantos já continha alusões a essa história e então a desenvolvi, não como “relatório”, nem romance histórico pretendendo dar conta de todo o contexto da época, apenas como uma revisão subjetiva e lírica da experiência e sentimentos da personagem narradora.
Não se trata de autoficção ou de memórias, embora eu tenha emprestado à protagonista, como cenário, características de um povoado no qual de fato vivi, percursos que de fato fiz, e muito do que vi, ouvi, toquei e tive de aprender ao longo da minha vida. A biografia e a personalidade da protagonista dessa história não são as minhas. Mas são nossas.