Quando soube do assassinato de Pasolini, pensei em escrever uma novela sobre o acontecimento. Eu me sentia ligado ao cineasta, desde que assisti O Evangelho segundo São Mateus, num tempo em que eu ainda não associava os filmes aos nomes dos seus diretores. A dessacralização do homem e da natureza, o choque entre culturas tradicionais e modernas, temas caros a Pasolini, também me interessavam fortemente.
Li tudo o que saiu publicado sobre o crime, recortei páginas de jornais e revistas, os artigos de Glauber Rocha e Luiz Nazário, fiz anotações, mas nunca me dispus a sentar e escrever. Sempre que ensaiava algum começo, sentia-me como se exumasse o corpo massacrado do artista. A coragem ia embora e eu buscava um lugar de conforto, onde não havia sofrimento nem transtorno.
Tinha um esboço que me parecia bom, ideias originais, mas o escritor não avançava além do projeto, e a novela nunca ganhou a concretude de uma frase. Vários acontecimentos da biografia de Pasolini eram importantes, mas pensei em fixar-me no seu martírio de meia hora, no ato sacrifical pressentido e buscado por alguém que sempre brincou com o fogo. Também pensei: se eu escrevo sobre um cineasta, posso fazê-lo na forma de um roteiro de curta-metragem.
O conto desaparecia por longo tempo da memória, orbitava distante de mim, até que um estímulo o trazia de volta, reaquecendo meu projeto. O filme Medeia me impressionara pela narrativa cheia de repetições, como os gestos de quem sofre um transtorno obsessivo compulsivo. Revia a película, escutava o centauro Quíron afirmando que tudo é sagrado, identificava os sacrifícios humanos em rituais propiciatórios. A terra precisava ser alimentada com o sangue de moças e rapazes virgens para manter-se fértil. Mas também carecia das entranhas de um cineasta maduro, um príncipe devasso.
Foquei minha objetiva no dilema do homem Pasolini, na contradição entre o corruptor e o santo, o algoz e o mártir, na defasagem do discurso e sua prática. Imaginava os últimos pensamentos do intelectual atormentado, o que prevalecera em meio aos instintos sexuais, o medo e a razão. Avanço e recuo da câmera, pulsão e arrependimento.
Desloquei geografias, troquei nomes. Pedro Paulo por Pier Paolo. Bairro de Itaquera paulista, no lugar da praia de Óstia, próxima a Roma. Brasil por Itália. O mundo é sempre o mesmo, a perversidade é a mesma em qualquer latitude, apenas os homens podem não estar à altura das suas tragédias. Pasolini sempre desejou o silêncio absoluto, imaginando-o fora da Itália, em lugares pobres e distantes, onde as pessoas ainda guardavam expressões antigas, salvas por milagre da corrosão do consumo. Combateu o consumo com a ferocidade de um profeta e foi tragado por uma de suas bocas: um garoto sapo.
Quando me sentei, depois de 25 anos, para escrever a história que se tornara um pesadelo, não fiquei mais de quatro horas na frente do computador, nem consegui produzir mais de cinco páginas. O conto baixou como os orixás nos terreiros, de assalto, fazendo de mim um cavalo obediente. Estrebuchei e bati nas teclas durante apenas quatro horas, igual a um atuado. Ao final do transe, levantei-me da cadeira, saí para a rua descalço e caminhei. Quase não revisei o texto, ele ficara tempo demais armazenado. Eu já podia deixar Pasolini descansando em paz.
Não sei onde li, nem se li, que o jovem assassino tinha o apelido de Sapo ou se parecia com um sapo. Durante os anos em que elaborei a narrativa dos minutos finais em que Pasolini viveu seu próprio personagem, inventei muitas histórias. E através da repetição de tomadas cinematográficas, como um diretor obsessivo buscando o melhor resultado, também procurei alcançar a redenção desse homem contraditório, decidido a se autodestruir. “Sapo” transformou-se no título do conto. Pasolini se entregava a rituais fetichistas com meninos sapos, na esperança, talvez, de que eles se transformassem naquilo que o seu desejo jamais alcançava. E na compulsão desenfreada, perdia o senso de perigo.
“Sapo” virou “Homem Sapo”, no livro Retratos imorais. Um ajuste de angulação para uma série de contos sobre homens, seres perplexos que a modernidade desfocou. Pedro Paulo dirige o seu assassino durante a matança ritual. Ordena que ajuste os faróis do carro antes de passar com as rodas sobre o corpo tornado frágil.
Avanços e recuos.
“É só no momento da morte”, Pasolini disse em 1967, “que nossa vida ambígua, suspensa e indecifrável até ali, adquire significado”.
A luz forte dá lugar ao escuro de uma noite sem estrelas.
— Corta! Perfeito. Continuaremos amanhã com outros personagens.
Leia aqui o conto “O sapo”, presente originalmente em Retratos imorais