Quem é Jeroni Fernanflor?
Alguém que pode merecer mais do que ódio, amor e compaixão.
Está vivo e caminha desobrigado de verdades. Mas de qual verdade cuidaria, num mundo da mais-valia, do mais-que-verdade, do sonho da hipérbole devastadora por todos os lados?
Para o escritor,a verdade só é possível no largo universo da linguagem. Ela iguala tudo: indivíduo e multidão. E Jeroni está preso a esse beiral: o pesadelo coletivo de solidão, o sonho do individualismo inalcançável.
Quem é?
Fernanflor é o retratista, retrato e retratado em Fernanflor, meu romance.
Ele não acredita na salvação se não chegamos sozinhos lá e, nisso, inaugura a desumanidade mais humana, porque reconhece a tragédia de sempre precisarmos do Outro para nos contemplar. O Outro nos preenche. O Eu é um truque ao espelho.
Fernanflor talvez considere tolice amar qualquer sonho de liberdade, essa Ilha.
Mas isso são ideias altas ou demasiadas ou em vão.
Personagens não são feitos de ideias, mas de coração e experiência. Parte da experiência pode até dá-la o escritor, no entanto o coração e sangue para bombear dá-lo certa estirpe de demônio inato, o tipo com o qual ou se nasce com ele ou não se é escritor, como disse Faulkner.
É no coração humano do personagem que pulsa a verdade.
E é a desumanidade, e não o espírito elevado, a única ferramenta de Jeroni para retratar os seres humanos em torno de sua gana e ganância, maravilhados pela morte, pela vaidade e o dinheiro, onde estão iludidos pela descoberta do gene da felicidade. Jeroni não estranha nenhuma dessas coisas humanas, sofrimentos — paixões; estão doentes de feiuras, têm a vida impregnada por ardis de todo azar. Porém, não é juiz de nada, embora pudesse ter sido tudo o quanto seu desejo fundasse. Assim como é, acredita elevar ao máximo sua experiência humana na Terra.
Pouco importa se o mundo é justo ou injusto. Ele pinta.
Quem?
A tristeza ou a alegria são para ele expressões da beleza vital. A pintura é sua sublime pilhagem, assim como o sexo é para a psicanálise, aliás talvez tenha sido para conter tanta interpretose que Jeroni Fernanflor recusou-se a pintar o retrato de Sigmund Freud. “Não me interessei pela encomenda. Repassei.”
Ele atira. Altera a emoção do bando. Supera todos no apogeu e cada um na derrota. Ou é como diz Gonçalo M. Tavares olhando nos olhos de Jeroni: “Quanta arrogância necessitas para sentir que o prédio mais alto é mais baixo que tu!”. “Também tu não escaparás! O ponto final é, por vezes, um ponto, mas ponto-bala em plena testa.”.
Esta constatação não serve também para cada um de nós o tempo inteiro?
Quem não é Jeroni Fernanflor, afinal?
“Jeroni nos engole. Jeroni me engoliu. Estou dentro dele, agora.”, disse Lourenço Mutarelli diante da Ilha Redonda, em Jeroni.
Leitor e autor de romances não dão nenhum passo sem assinar esse pacto de devoração e devotação um pelo outro.
Por isso, criaturas de romance nunca vêm a passeio.
Tranquilo, ocioso e altivo, Jeroni caminha. Avança pelo magasin, senhor de si e de suas emoções, sem que nada, nem o tempo, possa feri-lo. Ele imagina e só depois o mundo passa a existir. O mundo da representação, desejo e beleza. E de nenhum escrúpulo.
Ele é o que faz?
Observa. Tem a imaginação alterada pela observação da realidade. E a observação alterada pela imaginação. Nisso se iguala a um escritor.
Mas se o perguntássemos, diria não acreditar na literatura, assim como não crê nas luzes nem nas perspectivas. Acredita redondamente na beleza e em nenhuma outra mágica. Todas as outras coisas no planeta são manchas de ideias.
Daria sua vida e colocaria sua fortuna na roleta para sentir outra vez o perfume da inocência. Mas a vida e o romance são o reino da experiência, onde nada é fixo e cada um está naturalmente no seu lugar. Esse concurso de forças pode engendrar as reações mais imprevisíveis e aterradoras. Sem saber porque, continuamos pactuando com essas criaturas. E, quando falamos em pactos, se lemos romances o suficiente, presumimos de quem afinal é a vitória.
Mas sempre acreditamos na virada, a cada página.
Por isso ler é uma das atividades mais mal pagas e arriscadas.
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Quanto a mim, contemplo daqui o sol violeta da ilha sem-fim e sem-começo, das verdades excessivas. Leio as provas de revisão enviadas por Samuel Leon. Tanto tempo depois de ter escrito este romance, sintoJeroni ainda me empurrando fortemente livro adentro. Ele e suas contradições. Sua alma, boa e má, empurra, empurra com a certeza de fazer pulsar para sempre o coração do seu tempo: o agora.
Isso me faz amá-lo, odiá-lo, e compreender que o Eu é só um truque, mas certamente o truque mais perigoso. Montado nesse cavalo de eletricidade, vejo progredir a convicção de que foi para isso que cheguei até aqui. Depois de muitos anos, choro, porque descubro ter passado estes cinquenta anos escrevendo esse romance. Isto me conclui. Me cerca. Me enterra. Fernanflor finda por me escrever.