
Escrever sobre o processo de criação de um livro é como contar uma história de pescador. Alguma coisa pode ser verdade: o tamanho do peixe, a vara, o anzol, as condições climáticas, o barco, a técnica, o cronômetro, tudo isso. Mas o que quero dizer mesmo é que meus contos surgem de um estranhamento com o cotidiano, um desconforto. Sempre. Os sentimentos vão crescendo até se derramarem em palavras. O olho atento ao redor, as anotações diárias, a reescrita constante, tudo evolui para o desfecho em palavras.
Posso dizer que acordo cedo todo dia, exatamente às seis da manhã e escrevo religiosamente até às oito. Chego atrasado no trabalho por que estou muito concentrado no texto e os personagens “derramam” suas palavras em mim. Claro que posso esconder as fraquezas e arrastar o defunto para o terreno da rua ao lado. Mas talvez, se falar baixinho, com letras pequenininhas, ninguém note que estou mentindo e a verdade é que chego atrasado no trabalho por que sou preguiçoso e acordo tarde. Só consegui acordar cedo para escrever durante uma experiência que fiz de duas semanas. O resultado foi ótimo, mas nunca consegui repetir.
Não quero contar que escrevo meus contos sem um projeto de livro. Sabe, um planejamento do que escrever. Pode parecer muito imaturo. Nem digo que as palavras não brotam quando sento na frente do computador e começo a digitar o que meu cérebro soletra. Prefiro esconder que todo esse trabalho suarento para descobrir que palavra colocar depois da anterior às vezes insiste em se esconder na obviedade de uma sentença vergonhosa. E que nada se parece com aquela foto do Instagram: o novo Macbook com uma taça de vinho bem enquadrada e um caderninho Moleskine. E muitas vezes não suporto o calor do lugar e escrevo de cueca mesmo, no meio da sala de estar com as crianças correndo em volta. Lembro de uma foto do Glauber Rocha escrevendo um roteiro nu. Estamos no sertão, meu bem. E agora pareço um cara arrogante falando “meu bem” e querendo dizer “minha filha” para a vendedora da loja.
“As certezas parecem firmes antes das teclas começarem a quebrar seus ossos e os personagens tomarem suas vozes e estruturas”. Escrevo isso em outra versão dessa pseudo-crônica. Também escrevo que as vozes, nomes, vidas vão ganhando espaço sem muita ordem, sem muita reflexão e os sentimentos querem seguir pelos caminhos de outras mentes, não suportam mais a minha. Querem um livro para seguir a estrada. Mas apago essa versão.
Escrevi O contrário de B., que sairá pela Confraria do Vento e sinto um peso na lombar que pode muito bem ser a sombra do prêmio que o anterior ganhou, o Olho morto amarelo. Também não quero tocar nesse assunto de prêmio. Melhor evitar comparações (porque evitar comparações?) Sempre posso dizer que não sou um escritor profissional e me defender desse modo egoísta (mas seria covardia). Lembro dos amigos que leram os contos e opinaram e também se emocionaram. Lembro de uma estudante de Garanhuns que me escreveu emocionada depois que leu “o olho”... (agora me perdi no devaneio). Ninguém quer saber da dificuldade em escrever um livro com essa rotina caótica que você possui e conseguir publicar e conseguir dialogar com outros escritores e jornalistas e leitores.
Desenvolvi o livro como uma costura. Cada conto um nó a ser desatado pelo leitor. Sempre com uma carga pesada, um cotidiano que fere os sentimentos e essas feridas não se curam mais, elas se acumulam nos ossos do nosso corpo e aos poucos vão deixando de sustentar a vida. Um nó cego. Olhando daqui, de longe, me parece que a figura do pai é central em quase todas as histórias. Sua presença defeituosa ou sua ausência vigorosa. Ah, os adjetivos! Novamente meus terrores imprimem suas presenças na figura do pai. Será um movimento de auto compreensão enquanto pai de dois filhos? Será que irei ficar preso nesse “mastigado” interminável? Lembro do Carrero falando que literatura não é consultório psiquiátrico e meus amigos falando que se eu não escrevesse provavelmente seria um psicopata (novamente, novamente, os devaneios).
Devo voltar agora para a história do pescador e terminar a crônica (pseudo). Mas quero dizer mesmo é o seguinte: só consigo pensar tudo isso depois do livro pronto. Agora você consegue ver o tamanho do peixe? Enquanto escrevo não tenho a mínima noção de para onde devo ir.