“A natureza é madrasta. O amor é uma farsa. Dentro da mente de cada um há os desejos mais perversos, cruéis, individualistas, de morte, assassinato, estupro, antropofagia...” Esse é o mote de BIOFOBIA (assim, todo em maiúsculas), um romance de um roqueiro quarentão decadente que se refugia numa casa de campos após o suicídio da mãe. É uma obra que só opera no negativo da natureza humana, da natureza selvagem, o lado negativo da vida. Uma narrativa de certa forma panfletária nesse quesito, mas de maneira cínica. Longe de representar meus ideais, ou o que acredito, é a personificação do estado mental de um personagem em crise; ou personificação de uma crise em si, a biofobia, essa incapacidade de ver qualquer traço positivo na existência.
Tenho falado muito sobre isso recentemente; qualquer obra que foque no negativo — os grandes dramas, o terror, o suspense — proporciona ao público a experiência da montanha-russa, do trem-fantasma. Mergulhar numa ameaça externa e fictícia, da segurança de uma poltrona; sabendo que apesar daquela experiência a vida permanece intocada, talvez mais valorizada em contraste. Minha busca com BIOFOBIA foi essa — não apenas ao oferecer ao público, mas principalmente ao vivê-la como autor. Obviamente fiz uso de muitas crises pessoais para abastecer o livro, mas elevei a tal potência que minha trajetória pessoal e profissional se tornou um sucesso em comparação à do protagonista. André, meu personagem, é a personificação de tudo o que poderia haver de errado comigo, um artista sem arte, um quarentão narcisista e fracassado, alcoólatra e cocainômano... Acho que estou um pouco melhor do que isso.
BIOFOBIA é meu oitavo livro. E em pouco mais de dez anos de carreira já passei por altos e baixos, experimenteivários formatos e gêneros, com umsaldo que, para um cara negativista como eu, sempre se revela insuficiente. Passei de fato pela fase de questionar o por quê de escrever, por que publicar. Pouco antes de surgir a ideia do livro, fiz uma pequena turnê pelo Paraná, a convite do Sesc, em companhia de Eliane Brum, que estava lançando seu primeiro (e ótimo) romance de ficção. Em longas conversas que tivemos, ela me deu o insight que deveria ser óbvio: “O importante é se divertir.” Eu havia me esquecido do essencial que sempre norteou minha escrita.
Sempre fui um autor dos excessos. Acho que há uma valorização excessiva da “concisão”, da contenção; é um caminho admirável, mas não é o único. Admiro Satie, mas invejo Liszt. Procuro a chave do excesso para conquistar uma harmonia. Nesse sentido, o humor é essencial. É o ar que transforma todo aquele creme pesado em chantili. (Veja, até minhas alegorias são carregadas...). O humor também é uma forma de relativizar, de diminuir a gravidade de uma declaração; deixa claro que tudo são possibilidades, pontos de vista. Ao meu ver, é uma ferramenta essencial do niilismo; o humor negro comunica que nenhuma tragédia pode ser realmente levada a sério.
Em termos de estrutura, BIOFOBIA se beneficiou muito da minha experiência recente como roteirista. Eu queria trabalhar mais os diálogos, criar uma trama de suspense — foi um livro escrito já pensando em adaptações para teatro e cinema, então ainda que eu pudesse viajar nas digressões e reflexões internas, fui econômico nos cenários e personagens. A linearidade é algo que sempre me cativa. Aproxima o leitor do autor, faz com que ambos vão descobrindo a história juntos. Mas sei que é uma aproximação ilusória. A narrativa linear não precisa ser escrita linearmente. Quando comecei eujá tinha a história, sabia aonde queria chegar, como terminar. Então trabalhei com diversos capítulos abertos e ia colorindo conforme... bem, conforme surgia inspiração, para usar uma palavra que autores “profissionais” rejeitam. Eu tinha a história toda dividida em capítulos e ia recheando. Hoje o capítulo quatro, amanhã mais tintas no capítulo sete. Acho que o capítulo três foi enxertado por último no livro, por exemplo, quando achei que era necessário mais pausa e suspense no início do livro. Assim foi um romance linear escrito de forma não linear.
Preciso dizer também que foi meu primeiro livro que de fato teve um trabalho de edição, pelo Lucas Bandeira de Melo, da Record. Como bom editor, ele não acrescentou uma linha — e como meueditor ele também não foi capaz de cortar. Mas deu sugestões valiosas para equilibrar o tom do livro. Fiquei feliz em seguir seu conselho de assumir o romance como de fato um thriller, não apenas um drama existencialista. Um dos últimos capítulos que escrevi para o livro foi a pedido dele, para dar mais suspense à tramajá de início.
BIOFOBIA foi minha volta ao romance adulto — uma forma de eu me reencontrar com minha literatura e descobrir o que ainda tinha para dizer a minha geração, que já entrou na meia-idade. Acho que consegui provar, ao menos para mim mesmo, que é possível amadurecer, porém sem perder a irreverência e a liberdade.