Ilustração de Janio Santos

Toda uma vida passa um escritor sem escrever. Desconfortável em sua cadeira acolchoada, ofuscado pela luz forte da luminária, petrificado em sua solenidade. Mesmo o mais prolífico dos escritores, talvez, passa toda uma vida entorpecido por graves pudores, dissipando-se em vícios vários, refém do silêncio que quer contrariar. Passa toda uma vida cercado de livros que não o amparam, livros que o oprimem por sua existência inquestionável, livros tão loquazes, tão ruidosos, tão opostos ao seu pequeno fracasso. Até seus próprios livros podem espreitá-lo com escárnio, mas o escritor insiste: toda uma vida a devassar impossibilidades, incertezas, hesitações, repetições, equívocos, falhas. Nos intervalos da vida fracassada o escritor escreve: o escritor se desfaz de si e alinhava algumas palavras.

 

Não sei por que me desfaço de mim para falar de um escritor genérico, o escritor, esse ser mítico em seu desamparo. Perdoem-me os colegas de ofício que nada reconhecem nestas generalidades: sou eu o escritor indeciso, inseguro, covarde. Sou eu que me entrego aos meus vícios dissipatórios, que me adio de tantas formas, me censuro, me acuso, me distraio, me esvaio em metalinguagem sem dela obter um prazer imediato. Mesmo estas parcas linhas, mesmo isto que não serve para nada, tudo isto que é tão precário, sinto que já o escrevi infinitas vezes — ou infinitas vezes o vi publicado com outras assinaturas, sob títulos bem melhores.

 

Neste texto eu devia falar sobre o passado: contar como um livro nasceu da paralisia, do recolhimento, do marasmo. Se os verbos estão todos no presente é porque não se tratou de uma ocorrência inusual: é sempre assim que os livros nascem, extraordinários em sua ordinariedade, imperceptíveis deslocamentos na imobilidade.

 

Eu vinha de publicar um livro que me tomara quatro anos, o que tampouco é excepcional. Vinha de escrever um romance que me consumira todos os esforços, um romance sobre a impossibilidade de um romance que, no entanto, me forçara a uma minúcia exagerada, a uma obstinação imprevista, verdadeira obsessão pelo detalhe, pelo ritmo, pela palavra exata. Da estante do meu escritório, entre outros livros bem mais respeitáveis, esse me espreitava com extrema mordacidade, duvidava que eu pudesse sequer igualá-lo, insistia em me ver calado. Tão cedo, parecia, eu não seria capaz de derrubá-lo de seu posto assoberbado.

 

Precisava de um exercício bem mais modesto, um gesto que rompesse a inércia que me tomara desde aquele último ponto final. Não sei em que instante, ou respondendo a que estímulo, me ocorreu escrever um livro infantil. Em minha biblioteca tão solene não havia nenhum — nenhum a me oprimir com seu sucesso, sim, mas também nenhum a me ensinar com seu descaminho. Em minha biblioteca, de livros infantis só quem falava era Benjamin, acusando a tradição de obras edificantes e moralistas, descrevendo o preconceito que sofrem as crianças, supostos seres diferentes de nós, a exigir do narrador estripulias e mirabolâncias. Benjamin me garantia que o que a criança exige são explicações claras e inteligíveis, não infantis; que ela aceita coisas sérias, mesmo abstratas e pesadas, desde que sejam espontâneas, desde que sejam honestas.

 

Em minha vida, confesso, quase não havia crianças: nada de filhos, sobrinhos novíssimos ainda. A criança com que eu devia me relacionar era outra, feita das palavras que eu lhe daria, concreta em sua abstração, firme em sua plenitude fictícia: era a menina que surgia da agitação inesperada dos meus dedos, a Menina de papel que passaria a habitar o meu livro. Seus eram os anseios que eu devia compreender, sua a aflição que guiaria o conflito. Mas que aflição poderia acometer uma menina dessas, em sua existência tão tênue, em sua evanescência característica? A resposta me veio espontânea e honesta: sua aflição devia ser o reverso da minha. Se eu me afligia por escrever, por comandar seu destino, ela se afligia por ser escrita, por ser comandada por mim, por existir apenas nos limites do livro.

 

Na angústia dela dissolveu-se a minha, e assim, em contrapartida, pude me empenhar em dissolver a dela. A dela foi uma resolução definitiva; a minha durou apenas um instante, sucedido por outros longos silêncios, novos receios excessivos, novas vírgulas feito barreiras intransponíveis. Às vezes, porém, ainda intuo aquela leveza ao escrever — alguma lembrança da leveza me restou daquele livro. Com ele aprendi, sem muita certeza, que há sempre alguma infantilidade no ato da escrita, que escrever um novo livro é sempre um gesto infantil: e que a literatura pode bem se valer disso.