Ilustração por Janio Santos

Cá estou, os olhos passeando do computador à janela, daí para o teto branco, perguntando-me: de onde nascem os romances, contos, poemas? Muitas respostas já tentadas, nenhuma suficiente, creio, nem mesmo para uma única obra de um único autor. Aí pode estar a graça da literatura: porque sua origem é incerta, até espúria, talvez, não há interpretação dada e o leitor tem de reinventá-la a partir de sua também semioculta visão de si, do outro, da vida.

 

Como surgiu meu último romance, Quarenta dias? Tento responder, quando me perguntam, ou releio algumas páginas e comentários de outros leitores. Posso identificar e revelar algumas fontes do que está escrito em suas linhas, mas o que vaza nas entrelinhas continua inexplicado: de onde saiu isto? Certamente insinua-se no texto emergindo do amálgama de experiências, sensações, leituras, camadas geoarqueológicas que compõem a memória de quem viveu o bastante.

 

Há cerca de dez anos, uma conhecida telefonou no meio da noite: “Estou no ‘Trauma’, Biu sofreu acidente de moto”. Fui para lá e descobri que o hospital não previa parentes esperando ali notícias de seus feridos. Nem cadeiras no saguão, nem espaço coberto onde ficar. Voltassem depois, esperassem em casa notícia de morte ou alta. As mulheres, porém, mães, irmãs, namoradas ficavam, ao relento, sentadas na borda da calçada externa do prédio ou de canteiros do jardim em torno do pouso de helicópteros. Descalças, vestidas apenas com um short e um bustiê, com frio, fome e sede, sem dinheiro nem mais nada, como em casa estavam e se meteram na viatura policial com o filho, o marido baleado, esfaqueado. Passei a noite tentando alimentá-las, agasalhar, consolar, telefonar, se possível, a um parente. De manhã, Biu teve alta, só escoriações, mas eu fiquei lá, sem coragem de deixar as outras. Só entreguei os pontos 40 horas depois, ao receber do caixa eletrônico “saldo insuficiente”, acabada a gasolina. Percorri com essas mulheres a Grande João Pessoa, a levá-las a casa e trazer de volta ao “Trauma”, avisar um filho, marido, pai, irmão. Nessa romaria descobri na cidade frestas e rachaduras nunca antes notadas, um bequinho numa rua movimentada, a picada para a favela escondida onde eu antes só via mato ou mangue, portas rempenadas de casarões em ruínas etc. Cada fresta dava em outro mundo, o avesso da cidade, o que ela quer esconder e a gente quer esquecer. Voltei para casa porque não podia mais ajudar, sentindo como um remorso: seria justo continuar ali por quarenta dias, meses, anos. Ficou um sentimento de responsabilidade para com esses invisíveis e a ideia da personagem caída do lado “direito” da cidade no seu avesso, 40 dias, uma quaresma, a desvendar o que qualquer cidade grande esconde, logo ali. A ideia inquietava. Em 2011 convidaram-me para um projeto no qual romancistas brasileiros passariam 15 dias em um estado que não o seu, criariam romances a compor uma suposta “redescoberta do Brasil”. Propuseram-me Porto Alegre. Aceitei logo, sabendo que romance queria escrever: os quarenta dias. Reconhecendo-me incapaz de escrever um livro decente em poucos meses, não esperei pelo financiamento do projeto, usei milhas de viagens acumuladas, fui a Porto Alegre, minhas irmãs de lá me abrigaram, percorri duas semanas o avesso da cidade, usando como senha uma pergunta que depois emprestei a Alice, minha personagem/narradora: “conhece um rapaz da Paraíba, o Cícero Araújo, peão de obra, que não deu mais notícias à mãe, desesperada pelo sumiço do filho?”. O motivo da mudança da personagem paraibana para o Sul veio do que observo e ouço de tantas mulheres de minha geração: foram para o mercado de trabalho sem dispensa das tarefas domésticas, criaram os filhos sozinhas, adiaram projetos e sonhos pessoais e, chegada a aposentadoria, desejando tentar ainda realizá-los, são convocadas a ser avós profissionais. A pergunta/senha para vagar impunemente pela cidade veio dos inúmeros casos de gente desaparecida com que me deparo pela vida afora. O resto gosto de crer que é invenção... O próprio modo de composição do texto, depois de voltar do Sul, em episódios esparsos escritos em cadernos, cadernetas, e-mails para mim própria, fragmentos de leituras e pedaços de coisas catadas nessas andanças, gerou a estrutura do romance: um caderno de desabafo, composto de retalhos de escrita tortuosa e descuidada, em que a personagem tenta explicar-se o que lhe acontece. O projeto que me empurrou para o Sul não foi adiante, mas o romance está aí.