homemdosapatobranco

Como a crítica de TV ilumina questões sobre seu público? Como são construídos os fatos que compõem a(s) historiografia(s) da televisão no Brasil? São perguntas que podem ficar com o leitor ao final de O Homem do Sapato Branco: A vida do inventor do mundo cão na televisão brasileira, livro de Mauricio Stycer (foto). Ele segue a figura de Jacinto Figueira Júnior (1927-2005), apresentador do programa O Homem do Sapato Branco, nas décadas de 1960 e 1980, e responsável por criar um formato sensacionalista para o jornalismo policial brasileiro – uma retórica ao mesmo tempo violenta e moralista que atacava e às vezes agredia os acusados de crimes, bajulava autoridades e ainda agregava à programação invasão de hospitais para “denunciar” supostas más condições, exposição de pessoas menores de idade, assistencialismo com pessoas humildes e uma série de pautas que pareciam flertar com o realismo maravilhoso (como a de um homem cisgênero supostamente grávido).

Os assuntos, métodos e abordagens de Jacinto são ou foram visíveis (em diferentes graus e tipos de adaptação) em programas de apresentadores como Ratinho, Sonia Abrão, Christina Rocha, João Kleber e afins. “Mediunidade, ritos de religiões afro-brasileiras, espiritismo… Na década de 1960, a televisão tratava tudo que não conhecia bem ou que considerava exótico como tema de ‘investigação jornalística’. Jacinto não foi o único a embarcar nessa, mas foi fundo em algumas matérias, causando o efeito desejado: escândalo”, informa Stycer. Ainda que a carreira de Jacinto como comunicador tenha alcançado o final dos anos 1990, ele fez fama trinta anos antes. Tentou ser cantor, mas suas chances surgiram mesmo no mercado da mídia, no rádio e na TV. Pessoa prática e dotada de iniciativa, conseguiu aproveitar a precariedade que existia nos primórdios da televisão no país para ocupar espaços de visibilidade. Foi produtor de programas nos quais eram realizadas “reportagens” destinadas a mostrar “a realidade das ruas” – muitas com atores, sem priorizar a apuração jornalística e com forte apelo entre as camadas sociais mais humildes.

Esses programas foram uma espécie de laboratório para O Homem do Sapato Branco, no qual o apresentador surgia de terno, fumando e com o famoso calçado no pé a trazer pessoas detidas pela polícia, ir a delegacias, prestar “ajuda” a pessoas supostamente dependentes de drogas, transmitir a realização de cirurgias, entre outras situações. Mirou no escândalo e acertou em cheio, conquistando audiência a ponto de ser eleito deputado estadual por São Paulo em 1967 e de receber a atenção da ditadura, que o cassou em 1969. Volta à TV uma década depois, mas seu programa é tirado do ar após poucos anos. Vira repórter e atração de programas similares com mais projeção à época até o declínio definitivo no final da década de 1990. Via Ratinho como seu principal “sucessor” no formato, algo que comentava abertamente sempre com críticas (em especial, relacionando de alguma forma ao esquecimento de que foi alvo no fim da vida).

“Mas Jacinto também exibiu várias qualidades. Eu destacaria a coragem de abordar temas até então considerados tabus; a busca pela informação (e pelas imagens) nas ruas; a audácia de encarar poderosos com os quais não tinha relações; o olfato apurado para os assuntos que interessavam o público; a independência em relação aos superiores”, pontua Stycer, sem esquecer que, à diferença de comunicadores como Dercy Gonçalves, Moacyr Franco ou Flávio Cavalcanti, “Jacinto abriu uma porteira que causa mais danos do que qualquer outra porque sempre se apresentou como alguém que supostamente mostrava a verdade ‘nua e crua’”, mostrava o “mundo cão”.

 Tanto o programa O Homem do Sapato Branco quanto seus sucessores se situam/situaram entre uma audiência massiva, majoritariamente popular, e o olhar moralista das elites (reforçado pela falta de anunciantes para a programação, dado seu caráter apelativo). Cada um parece explorar à sua maneira um modo de operação que marca a violência como ligada a uma cultura personalista, centrada em apresentadores justiceiros – seja em situações de polícia, como Gil Gomes e vários outros, seja em situações íntimas, como Márcia Goldschimidt – que se vendem como jornalismo.

O livro de Mauricio Stycer não se propõe a responder as perguntas que abrem este texto, nem realiza interpretações sociológicas ou antropológicas sob outras perspectivas –  sua preocupação parece ser contar uma história de maneira responsável –, mas o leitor pode sair dele com a conclusão de que o sensacionalismo no jornalismo policial é uma demonstração da violência enquanto linguagem presente no cotidiano brasileiro.

“Contar uma história de maneira responsável”: próximo do formato livro-reportagem (a quarta capa o classifica como “perfil biográfico”), O Homem do Sapato Branco tanto lança luz sobre um produto significativo na história cultural brasileira da segunda metade do século XX quanto humaniza uma figura pouco lembrada e estigmatizada. Sem deixar de atribuir responsabilidades a Jacinto, o situa em seu tempo e o devolve ao público em sua complexidade, discutindo brevemente as estratégias desenvolvidas pelo comunicador, apontando seu pioneirismo e sua perpetuação.