Pelo décimo terceiro ano, em mais uma tarde, ela repete o ritual das quintas-feiras ao chegar à penitenciária feminina de Salvador: identifica-se, informa a qual universidade é vinculada e que está ali para dar aula. Neste dia, ela acrescenta a entrega de pastas plásticas com cadernos e canetas para a revista. O material será utilizado pelas alunas de várias idades que frequentam as suas aulas e oficinas literárias. Uma das agentes penitenciárias, recém-chegada à função, diz que não é permitida a entrada de canetas no presídio. A professora sorri, diz que tem anos que essa recomendação não tem validade e se encaminha para a direção do presídio, que confirma a informação e libera a entrada do material. Todo o trâmite de acesso leva longos trinta minutos e, apesar de se tratar do décimo terceiro ano, ela garante que toda semana é a mesma coisa. Professora associada de literatura na Universidade Federal da Bahia (UFBA), advogada e ativista antiprisional, Denise Carrascosa coordena o projeto de extensão Corpos Indóceis & Mentes Livres, trabalho de produção de oficinas de escrita literária no Conjunto Penal Feminino do Complexo Penitenciário Lemos Brito, em Salvador. Visto por quem está de fora, ela segue os procedimentos com o ânimo de começo de jornada, determinada e inabalável diante das barreiras camufladas de burocracia.
Já passa das 14h quando a professora ultrapassa as grandes de segurança e encontra as primeiras alunas sentadas em roda enquanto aguardam o horário da sua aula. Uma delas vem imediatamente dar um abraço em Denise. Ela é a primeira de outras que se aproximam da professora. A sua chegada parece anunciar que elas terão uma tarde diferente do cotidiano opressivo, os cumprimentos são calorosos e a relação de proximidade entre professora e alunas é notória. Uma das mulheres agradece pelos óculos de grau que, depois se sabe, foi doado pela professora para a detenta, uma mulher alta, com mais de 50 anos. Entre os barulhos de grades abrindo e fechando, passadas de um lado para o outro, vozerio de mulheres no tempo cronometrado em que não estão em suas celas, encontros cheios de entusiasmo. Por um átimo de segundo, poderíamos esquecer onde estamos. Mas isso é pouco provável pela evidência dos corpos daquelas mulheres, dos uniformes, das expressões variadas entre cansaço, vontade de viver e resiliência. Os corpos lembram a todo instante a condição em que aquelas mulheres estão.
O projeto Corpos Indóceis abrange oficinas de leitura e escrita literária, que são realizadas durante todo o ano, semanalmente, com Denise Carrascosa e convidados. Nesses encontros, as alunas leem textos literários e críticos e são orientadas sobre suas próprias produções. A lista de nomes que já participaram como palestrantes e oficineiros é extensa e inclui os escritores Conceição Evaristo (membro honorária do projeto), Luiz Alberto Mendes (1952-2020) e Luciany Aparecida, além da atriz de teatro Márcia Lima e da performer Val Souza. A cada livro lido e resumido, as detentas têm a remição de quatro dias da pena.
Em junho, o Pernambuco entrevistou e acompanhou a professora Denise Carrascosa em uma dessas quintas-feiras na penitenciária. Estávamos a um mês de um acontecimento para aquelas mulheres – a visita das professoras e ativistas Angela Davis e Gina Dent ao complexo, onde lançaram os livros Abolicionismo. Feminismo. Já. (Companhia das Letras, 2023), prefaciado pela própria Denise, e Firminas em fuga (Ogum’s Toques Negros, 2023), coletânea de poemas produzidos pelas mulheres encarceradas participantes do projeto em 2022. Naquela tarde de junho, o livro de Davis e Dent (do qual também são autoras Erica R. Meiners e Beth E. Richie) ainda era inédito, mas elas puderam ler e discutir a introdução da obra − que começa com uma provocação: “Por que feminismo abolicionista”. As cópias impressas em folhas de A4 pela professora propositalmente não traziam a autoria do texto, mas quando souberem que Angela Davis era uma das autoras, o alvoroço foi tamanho. Da solidão de suas celas, da exclusão do mundo onde são depositadas, aquelas mulheres, em sua maioria com menos de 30 anos e negras, aprendem sobre feminismo, abolicionismo e quilombismo.[nota1] Para elas, o futuro não é uma projeção arremessada lá fora. Acontece nos movimentos promovidos por projetos como o coordenado por Denise e que lhes restauram a humanidade e a vida.
“NOSSOS PASSOS VÊM DE LONGE”
A frase já clássica atribuída a Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, é constantemente referenciada quando lembramos a longa data de participação de mulheres negras na luta pela justiça social. Mas aqui, bem serve para emoldurar a história de Denise Carrascosa até sua chegada a mais uma quinta-feira no presídio. Denise tem uma consolidada carreira como docente do Ensino Superior, atuando no Instituto de Letras da UFBA (nas disciplinas de literatura de língua inglesa) e no Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura. Assim mesmo, seu nome ultrapassa as rodas específicas da literatura desde que passou a atuar no projeto de extensão que, a bem da verdade, vai muito além da universidade e parece realizado por uma espécie de comprometimento de vida que ela vai desfiando enquanto dá entrevista. Em algum ponto imperceptível já não é possível separar a biografia de Denise do que ela tem feito na penitenciária feminina. É como se cada passo da sua vida lhe encaminhasse para o lugar agora ocupado. Criada no candomblé, é claro que ela entende também como uma missão dada pela orixá que comanda seu Ori e disso ninguém pode duvidar.
Nascida em uma família de juristas (pai, mãe, uma tia paterna e o único irmão são todos formados em Direito pela UFBA), Denise lembra que, quando pequena, acompanhava o pai, Marialvo Carrascosa, falecido em 1996, ao seu escritório no Centro Histórico de Salvador, na Praça da Sé, onde o jurista atendia voluntariamente homens negros que cumpriram pena. “Ele teve um projeto voluntário dentro de presídio nas décadas de 1970 e 1980, de atendimento gratuito, fazendo todo um trabalho de acompanhamento de processos penais. Filho de Xangô, além desse apoio, ele ainda tentava alocar esses homens no mercado de trabalho, fazer pequenas colocações”, explica. Ouvir as histórias desses homens, “irmãos de cor”, como ela se refere, fomentou sua vontade de ouvir o que se conta das prisões muitos anos depois. A mãe, Iranildes, nascida na Ladeira do Curuzu (famosa pelas canções do bloco afro Ilê Aiyé), foi uma das poucas mulheres negras a frequentar o curso de Direito em sua época de estudante. Hoje, é auditora fiscal aposentada do Ministério do Trabalho e compôs com Marialvo as duas primeiras referências da professora e advogada. Denise lembra dos relatos de sua mãe sobre as dificuldades de deslocamento para estudar em bairro nobre da capital baiana, quando muitas vezes tinha apenas o dinheiro para o transporte.
Além deles, uma tia foi determinante para cultivar outros dois fios da sua biografia – o gosto pela literatura e a criação da Biblioteca Abolicionista Maria Firmina dos Reis, também nas instalações do Complexo Penitenciário Lemos Brito. A tia Marina, hoje com 86 anos, negra, tornou-se juíza e apresentou a Denise o prazer da leitura. “É na casa dessa ‘tia-mãe’ que conheço uma biblioteca e isso é importante porque vai repercutir no que eu vou fazer lá na frente, no presídio”, conta. A Biblioteca Abolicionista Maria Firmina dos Reis, de início formada com estantes que Denise levou da sua própria casa e passa pelo acervo de gêneros diversificados que contam com sua coleção completa de livros de Direito.
Com o apoio da família, Denise inicia nos anos 1990 uma trajetória profissional que parecia dada como certa não fossem os entraves fabricados pelo racismo. Na época em que cursou a graduação, não havia docentes negros na Faculdade de Direito da UFBA, muito menos políticas afirmativas (a exemplo das cotas raciais), que só apareceriam depois de 2003, no primeiro governo do PT na Presidência da República. Soma-se a isso uma Salvador segregada com a comunidade negra realizando serviços subalternos, um desdobramento da escravidão que ganha corpo com a topografia da cidade. Tudo organizado a partir do discurso da democracia racial e da falsa impressão de que a capital baiana é a capital da alegria e do Carnaval o ano inteiro. Havia, sim, a construção de uma consciência negra e de um discurso de construção de autonomia, mas isso a cargo dos movimentos sociais, sem políticas públicas que os apoiassem. No meio jurídico, o racismo encontra um par perfeito: o machismo, que, como lembra Denise a partir de sua própria experiência, atua sobre os corpos sobretudo de mulheres, o que lhe gerou adoecimento e contribuiu para um recálculo de rota em sua carreira. “Tive de abrir mão do meu cabelo crespo, do meu modo de vestir, de esconder a religião. Minha mãe tinha muito medo por meu perfil combativo, muito próximo do de meu pai, que sofreu retaliações em sua época. O cenário de opressão desse corpo de mulher negra nesse meio jurídico me fez adoecer e isso me destituiu da vontade de permanecer nessa carreira”, lembra. Assim, o curso de Letras, até ali sua segunda opção, tomou a frente, embora ela reconheça que o Direito nunca a abandonou e não demora para entendermos o por quê.
O BRASIL PÓS-CARANDIRU
Em 1992, um evento marca o jornalismo, a história e a sociedade brasileiras de maneira ampla: o massacre da Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, quando 111 detentos foram assassinados pelas forças policiais, levantando uma discussão sobre o encarceramento. O Massacre do Carandiru não só pautou a mídia exaustivamente como teve consequências em uma série de produções culturais no cinema, no teatro, nas artes plásticas e nas séries televisivas, que irão trabalhar com o subterrâneo carcerário do país. A produção é vastíssima e pode ser encontrada nas artes visuais com obras como 111 (1992) e 111 Uma vigília (2016), de Nuno Ramos; no cinema com Carandiru: O filme (2003), de Héctor Babenco, ou no livro que serviu de inspiração ao longa-metragem, Estação Carandiru (1999), de Drauzio Varella.
Dessa safra, uma obra em especial merece um grifo: Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes, autor que conheceu o Carandiru como poucos ao cumprir a sentença máxima de detenção permitida no Brasil (30 anos). Nesse tempo, já havia grupos de pessoas que faziam trabalhos com produções artísticas nas penitenciárias e Mendes chamou a atenção ao ganhar um concurso literário, em 1999. Começa ali uma janela de efervescência de publicações, do olhar atento do mercado editorial para o cárcere. Assim, não tardou para a maior editora do mercado à época, a Companhia das Letras, ser informada de que havia ali um homem com um calhamaço de textos escritos de próprio punho com grande qualidade literária. Memórias de um sobrevivente foi publicado em 2001 e depois Mendes, já em liberdade, torna-se um escritor profissional, publicando livros como Às cegas (2005), Cela forte (2012) e Confissões de um homem livre (2015). Ele também promoveu oficinas para detentos como aquelas que um dia lhe deram outra perspectiva de vida.
O Brasil que surge a partir do Massacre do Carandiru, a publicação de obras de encarcerados como as de Luiz Alberto Mendes e os interesses de vida de Denise Carrascosa se encontram no projeto que ela escolhe desenvolver no doutorado em crítica literária e cultural − quando, aliás, já era professora efetiva da UFBA. Embora já houvesse a discussão sobre a literatura de prisão nos Estados Unidos, no Brasil os projetos de investigação que atentaram para o Massacre do Carandiru o aproximavam do Holocausto. Produzidas sobretudo por acadêmicos de São Paulo, as pesquisas que envolviam literatura e cárcere usavam como chaves de leitura o trauma, a memória e a história dos judeus. Denise pontua que apesar da relevância de tais trabalhos, eles não enxergavam uma questão incontornável em um país de passado escravista. “Nós temos um outro fundamento histórico, a escravidão de afrodescendentes, um forte elemento estruturante que é a raça”, justifica. Em 2008, ela defende a tese Técnicas e políticas de si nas margens: Seus monstros e heróis, seus corpos e declarações de amor, já realçando fortemente algumas questões que lhe são caras até hoje e que ganham forma na compreensão do quilombismo e do abolicionismo. A tese, vertida em livro de mesmo título em 2015, lhe deu, além de fundamentos de compreensão dos discursos que forjam os sujeitos encarcerados, o argumento do seu próximo passo – a constatação que o mercado editorial não enxergava ou não queria ver a produção de mulheres encarceradas, em sua maioria absoluta, negras.
FEMINISMO ABOLICIONISTA
“Nem o abolicionismo nem o feminismo são identificadores estáticos, mas métodos e práticas políticas. Um projeto ou campanha é considerado feminista ou abolicionista se os participantes não usam essas palavras para descrever seu trabalho ou campanha? Poderíamos demarcar discretamente o que há de ‘feminista’ no ‘abolicionismo’ ou o que há de ‘abolicionista’ no ‘feminismo’?”. A provocação lançada pelas autoras de Abolicionismo. Feminismo. Já. propõe apresentar o entendimento já posto em prática de que não é possível pensar em um feminismo que não seja abolicionista na perspectiva de que as violências estatal e individual se intercruzam. Portanto, não são estruturas bem definidas que separam gênero e raça, ao mesmo passo em que não é possível pensar a categoria “classe” sem essas duas primeiras variáveis. Um ponto importante é a compreensão da necessidade de uma convocação internacional para o feminismo abolicionista, o que não dispensa as atuações locais que já existem e fazem com que esse feminismo seja uma realidade no mundo, chamando atenção para uma série de opressões contra mulheres negras e periféricas.
Denise Carrascosa não chega ao presídio feminino à toa. Ela passa a se interessar pelas vidas das mulheres nas prisões e por suas produções literárias ao perceber que ali havia um dado não lido. Até mesmo quando a produção dos presídios se tornou a menina dos olhos do mercado editorial brasileiro, o interesse era pela produção dos homens. As mulheres sequer eram citadas, denunciando mais uma vez a parte mais oprimida da estrutura social quando equacionamos a sequência de privilégios entre homens e mulheres, brancos, negros e pardos. Uma das conclusões de sua tese defendida em 2009 e publicada em 2015 é que a escrita de si dentro do ambiente carcerário, a partir da opressão do sistema prisional, é um mecanismo poderoso que produz uma capacidade de resistir e sobreviver a esse sistema. Outra conclusão já foi antecipada: a constatação de que o mercado editorial não publica mulheres, principalmente, negras. Em meio a este cenário, é curioso notar que naquele momento já havia um aumento exponencial de mulheres encarceradas por conta da política de guerras às drogas e que − como as pesquisas em Humanidades atestam e a literatura contemporânea tem discutido − a guerra contra as drogas é uma guerra antinegra, em sua atualização no século XXI.
Segundo dados de abril deste ano do Ministério da Justiça e Segurança Pública, 54,85% das mulheres presas no Brasil o são por envolvimento com o tráfico de drogas. Quando o público é masculino, esse percentual cai para 27,65%. Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados no final de julho, apontam que a população carcerária total (homens e mulheres) no Brasil aumentou em 257% de 2000 a 2022, ultrapassando 832 mil pessoas no ano passado. Desse total, 68,2% são de pessoas negras e 43,1% têm entre 18 e 29 anos. Os números assustam porque mostram como a prisão ainda é a principal política de segurança pública, desconsiderando questões sociais graves como a desigualdade e o racismo. O estado da Bahia tem um dos maiores contingentes prisionais, com mais de 12 mil detentos. Desse total, 1089 homens e 67 mulheres estão no Complexo Penitenciário Lemos Brito.
É necessário ressaltar sempre que as pessoas são posicionadas em situações de criminalização por um projeto político da sociedade brasileira moralista, com uma base muito cristã e que coloca às margens as pessoas que devem carregar todos os crimes daquela estrutura social. Nesse contexto, são os negros e periféricos as escolhas principais para pagar pelos crimes do capitalismo, produzindo uma verdadeira tragédia social. “Nosso trabalho é desconvencer a sociedade de que a prisão é um mecanismo justo e necessário”, acrescenta Denise.
Quem chegou até aqui pode ter a equivocada impressão que o trabalho arraigado da professora Denise Carrascosa apenas se encontrou com os mecanismos eficientes das opressões (de raça, gênero e classe social), desviou deles e seguiu adiante. A linearidade de uma possível ilusão biográfica se esvai em um fato que por dois meses pareceu o fim do projeto, mas acabou por lhe dar ainda mais impulso para as ações desenvolvidas hoje.
Ao final de cada ano de trabalho, as detentas participantes do projeto Corpos Indóceis & Mentes Livres criam algum produto cultural que sintetiza as atividades desenvolvidas em suas aulas. Este ano, por exemplo, elas têm trabalhado o gênero conto. Em 2016, o trabalho com literatura e performance, envolvendo o grupo de teatro Vilavox, resultou na montagem do espetáculo Não sou bicho, sou mulher e, em 2017, a performance foi apresentada no conjunto penal feminino. O que não se esperava era que uma denúncia grave e recente à época comporia a performance − a de que uma detenta, em recuperação de uma cirurgia de hérnia, estava sem alimentação, assistência médica e em uma “tranca” (também conhecida como “solitária”). Na plateia, ativistas de direitos humanos, artistas locais, representantes da Defensoria e do Ministério Público, além de representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, da diretoria do presídio e da Secretaria de Administração Penitenciária da Bahia. Após forte tensão neste dia, o projeto foi imediatamente interrompido e só voltou a ser executado dois meses depois, graças à intervenção da professora e ativista Angela Davis. De passagem por Salvador para um evento da programação em alusão ao 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, Davis se interessou em conhecer projetos que realizam trabalhos de ressocialização em presídios. Ela não só escutou falar do projeto como pediu para conhecer Denise Carrascosa. Durante sua conferência na reitoria da universidade, Davis citou a censura estatal e sugeriu a criação imediata de um abaixo-assinado pelo retorno do projeto.[nota2]
Depois desse episódio de 2017, nem as restrições impostas pela pandemia de covid foram capazes de minar o projeto. Em 2020, das atividades socioeducativas do complexo feminino, apenas as do Corpos Indóceis & Mentes Livres foram realizadas, o que foi possível pela criação dos Diálogos Abolicionistas, versão on-line do projeto, que consistia em videoaulas com autores − entre eles Ana Maria Gonçalves, Eliana Alves Cruz, Conceição Evaristo, Itamar Vieira Junior e Edimilson de Almeida Pereira. Os autores e autoras gravaram videoaulas e as alunas tinham acesso a livros deixados na biblioteca do projeto. Por cada livro lido e resumido, certificado pela UFBA e em diálogo com a Vara de Execuções Penais, as detentas tiveram quatro dias de remição de pena. “Nesse período trabalhamos muito para diminuir as penas. Chegamos a ter uma redução de 50% de encarceramento no primeiro ano de pandemia”, acrescenta a professora.
A etapa mais recente do projeto, explica Denise, é a continuidade das publicações das detentas, a serem lançadas por meio do selo Corpos Indóceis & Mentes Livres, criado em parceria com a editora Ogum’s Toques Negros. O Firminas em fuga, livro de poemas já mencionado, foi a primeira obra publicada pela coleção. O segundo volume será de contos, gênero que está sendo trabalhado em 2023. Além da Biblioteca Abolicionista e do selo literário, o trabalho abarca ainda o Prêmio Literário Abolicionista Maria Firmina dos Reis, além de projetos artísticos como o documentário homônimo, dirigido por Patrícia Freitas e disponível no YouTube.[nota3] Este último foi exibido na Festa Literária Internacional de Paraty de 2022 e na última edição do Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Contemporânea (Abralic), cuja vice-presidência no biênio 2022-2023 foi de Denise.
Em uma tentativa de conceituar o movimento feminista abolicionista, Denise Carrascosa o define como “um movimento internacional, histórico, que pensa e constrói projetos de emancipação, de liberdade da comunidade negra, feminina, empobrecida. Mas também projetos de liberdade para a sociedade como um todo, compreendendo que a escravidão ainda não acabou e que permanece nos mecanismos de aprisionamento e de violência policial”. Esse movimento remonta ao tempo em que havia uma escravização legalizada. Nessas épocas já havia movimentos de mulheres para libertar pessoas escravizadas. “Em 1856, Maria Firmina dos Reis já estava denunciado a escravização. Ela já produzia documentos literários antiescravistas. Esse movimento vai atravessando o tempo. Os sistemas de opressões contra corpos selecionados não acabaram e entendemos que o sistema prisional substituiu o modelo colonial da escravização”. O projeto Corpos Indóceis e seus desdobramentos são a prática dessa teorização, que Denise traz de várias passagens de sua trajetória, do mundo visível em sua comunidade e de sua família ancestral, que ela acredita soprar seu sentido de vida.
[nota1] Proposta criada por Abdias Nascimento (1914-2011), elaborada a partir da percepção da população afrodescendente, o quilombismo retoma a experiência dos quilombos (de teor comunal) para fundamentar a mobilização e transformação sociopolítica em enfrentamento a atmosfera de preconceito na qual vivemos. Ver, entre outros, o livro O quilombismo: Documentos de uma militância pan-africanista (Editora Perspectiva, 2019).
[nota2] Conferência disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=waCyuZZap9Icom/watch?v=waCyuZZap9I
[nota3] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IyXNnVnbiuMwatch?v=IyXNnVnbiuM