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Para quem já atravessou uma noite em vão atrás de um cigarro ou precisou fazer gestos estéreis no ar, apenas para compensar sua ausência entre os dedos, o conto/novela Só para fumantes, do escritor peruano Julio Ramón Ribeyro (1929-1994), pode ser lido como narrativa de terror dramático. São radicais o vício e a decadência física ‒ e moral ‒ que ele impõe ao narrador com o passar dos anos. Numa passagem específica, temos a listagem de males sobre o seu corpo, que vai sendo corroído numa batalha inglória: “Tentei lutar muitas vezes – é hora de dizer – contra a minha dependência do fumo, porque seu abuso me prejudicava cada vez mais: sofria de tosse, azia, náusea, fadiga, perda de apetite, palpitações, tontura e uma úlcera estomacal que me fazia rolar de dor e me obrigava a submeter-me de forma regular a um abominável regime de leite e gelatinas”. Em outro momento, ele chega a pular de uma altura de oito metros, como um suicida, em busca de um maço lançado pela janela, após imaginar que não voltaria a precisar dele. Sobrevive à queda. E o seu vício também.

Mas os cigarros para Ramón Ribeyro não apenas contabilizavam os passos para o abismo. Estavam arraigados em sua própria existência, órgãos que não serão facilmente extirpados, como pormenoriza na narrativa em primeira pessoa Só para fumantes: “Os vaivéns da vida continuaram a me levar de um país para outro, mas sobretudo de uma marca de cigarro para outra”. Seu vício é uma espécie de pátria paralela, formada por por embalagens de Gitanes ou de Lucky Strike, tanto quanto o seu Peru natal ou a França onde também viveu (assim como muitos dos seus contemporâneos).

O vício é também o ponto de partida sem o qual a criação literária não se realiza. Como precisa aprender o narrador de Ausente por tempo indeterminado, conto que batiza sua mais recente seleta de ficções curtas a sair no Brasil. Aqui um escritor se vê obrigado a interditar as noitadas com os amigos para escrever o romance que maquinava há anos. O problema é que sem a bebida e as festas intermináveis não tinha o que dizer, ou melhor, não fazia muito sentido dizer muita coisa. O eixo se parte e viver perde o sal ‒ “Não era se afastando da vida, da sua vida, que viriam o ânimo, a inspiração e talvez até o talento, e sim assumindo plenamente essa vida, ainda que isso significasse sua própria destruição. Mas qual era essa vida?”. E “qual era essa vida?” talvez seja a pergunta capital que todo dependente se faz em algum momento do ciclo de pegar-ou-largar que a droga traz junto.

Traduzido por Ari Roitman e Paulina Wacht, Ausente por tempo indeterminado quebra um hiato de sete anos de lançamentos no Brasil desse que é um dos grandes nomes da literatura em língua espanhola do século XX e ‒ ainda assim ‒ um autor que ficou de fora das cifras milionárias do Boom literário hispano-americano dos anos 1960 e 1970 (em 2016, foram lançados os fragmentos que compõem Prosas apátridas dentro da coleção Otra Língua, da Editora Rocco). “[Ramón Ribeyro] Era, talvez, a pessoa mais tímida que conheci”, descreveu seu conterrâneo, o Prêmio Nobel Mario Vargas Llosa, que em contrapartida talvez seja a maior diva literária que esse continente já conheceu. Mas só o temperamento não justifica o papel lateral ocupado por Ramón Ribeyro, mesmo em seu país.

Sua literatura não tem a exuberância de Vargas Llosa ou de Gabriel García Márquez, nem mesmo chegou a se aventurar na criação de mundos, como fez Juan Carlos Onetti com a cidade de Santa María. Seus poucos romances nunca receberam muita atenção da crítica e para muitos o ponto alto da sua escrita é a reunião dos seus diários pessoais, que tem o sugestivo nome La tentación del fracaso. Seus contos não apresentam os sustos do realismo mágico e quando flertam com o fantástico é de forma mais sutil, como uma sombra que turva nossa visão ‒ como acontece na trama do conto Cena de caça, que causa mais incômodo que pavor. Os melhores momentos de Ramón Ribeyro residem na firmeza com que conduz personagens e situações a desenlaces tanto fulminantes quanto furtivamente cruéis, muitos deles questionando a própria noção de grande criador (os contos A solução e Chá literário são exemplares disso). É um autor que ganha no detalhe, naquilo que deixaríamos de lado, seja um maço de cigarros ou uma aleatória conversa sobre o final perfeito para um crime que parece impossível de ser realizado sem criar suspeitas.

“O conto deve contar uma história. Não há conto sem história. O conto foi feito para que o leitor possa, por sua vez, contá-lo”, ensina no decálogo sobre sua ideia de produção artística, presente na atual edição de Ausente por tempo indeterminado. “A observação desse decálogo, como se há de imaginar, não garante a escrita de uma boa história. O mais aconselhável é violá-lo de tempos em tempos, como eu mesmo fiz, ou então uma coisa melhor: inventar um novo decálogo”, ironiza ao final.

Originalmente, Ausente por tempo indeterminado foi publicado no Peru em 1987, como Só para fumantes, mas ganhou outro título agora para não ser confundido com a primeira seleta de contos de Ramón Ribeyro, lançada no Brasil, em 2007, pela Cosac Naify e batizada de Só para fumantes. Trata-se de dois volumes de textos distintos, apenas com Só para fumantes em comum. Enquanto uma editora não se aventura a traduzir por aqui os seus diários, vale muito também recorrer aos fragmentos do já mencionado Prosas apátridas, traduzidos por Gustavo Pacheco, que podem ser lidos ao acaso do dia, como um jogo de dados ou um I Ching, tamanha a sua diversidade de temas e a preciosidade das frases do peruano. Um dos fragmentos, inclusive, soa premonitório:

“Um editor francês, percebendo que a venda dos clássicos decaiu, decide lançar uma nova coleção, na qual os prólogos não serão encomendados a eruditos desconhecidos e, sim, a estrelas da atualidade. Assim, Brigitte Bardot fará o prefácio de Baudelaire, o ciclista Raymond Poulidor o de Proust, e o ator Jean-Paul Belmondo, que antes foi boxeador, o de Rimbaud. Belmondo começa o seu preâmbulo com estas palavras: ‘Cada vez que leio um poema de Rimbaud, sinto uma espécie de soco no queixo’. A venda é certa.”