Um casal a caminhar pela praia, os cigarros em seus lábios, dormir sozinho na Rua Augusta, um date de bicicleta pelo Recife e seu nome repetidamente, seu nome. As narrativas de amor e o amor na poesia. Seja qual for o caso, platônico, poliamoroso, à distância ou casado, narrar e contar histórias de amor é algo que acompanha a poesia em toda sua história.
Para celebrar o Dia dos Namorados e todas as formas de narrar histórias de amor, o Pernambuco separou 10 histórias de amor em poemas - versos de Cidinha da Silva, Raymond Carver (ambos nas imagens acima), Cheryl Clarke e outras/os.
TOMAR UMA CATUABA COM VOCÊ
[Regina Azevedo]
Tomar catuaba com você
é ainda mais tesudo
que ir a Hellcife, Natal, Fortaleza
ou ficar sequelado de 51 na Lapa
em parte por dançar forró com um mendigo suado
em parte por você ser o boy com o quadril mais eficiente do mundo
em parte por causa do meu amor por você
em parte por causa do seu amor por maconha
em parte por causa dos ipês albinos na estrada de Brasília
é difícil de acreditar quando estou com você
na existência de algo tão inerte
tão inodoro e ao mesmo tempo tão putrefato
quanto o atual Presidente da República
Nós andamos entre as fantasias da nossa canção
e de repente você se pergunta por que caralhos
alguém construiria um edifício atrapalhando o carnaval
Eu imagino o desmoronamento de um arranha-céu
e eu prefiro assistir ao acontecimento
de um desastre natural refletido nos seus olhos
Eu prefiro ver o seu sorriso diante de um maremoto
diante da falência da agroindústria ou das imobiliárias
a ver qualquer quadro pós-impressionista
exceto talvez Lautrec porque quando eu danço com você
eu não preciso fechar os olhos pra dançar com a melhor pessoa do mundo
Tomar catuaba com você
é ainda mais tesudo
que te assistir tragando um míssil
que ouvir você falando da potência das flores
que reposicionar a cama no lugar
que tropeçar e te encontrar
repetindo a palavra calma
enquanto o vento nos dá um sacode
e você diz que sente
a primavera fazendo cócegas
em nossas barrigas
UMA EXILADA QUE AMEI
[Cheryl Clarke, tradução de Thamires Zabotto]
uma exilada que amei me diz que está voltando para casa.
Arrogante, perguntei:
“De volta à cidade?”
“Não. Primeiro para Zâmbia. Depois Zimbábue.
Por fim Transvaal. Casa”, ela respondeu, triste.
Nós dormimos e acordamos com vozes de homens no corredor
perguntando, de porta em porta, sobre rostos que foram mudados
e nomes que não foram ditos desde então.
Eu a abracei
e lembrei dos brincos de ouro em minhas orelhas
perguntei uma maneira de manter contato
disse-lhe que ela tem um lar, desde que eu tenha o meu.
Segurá-la perto de mim até que ela me largue
e saia do quarto.
TREZE DE OUTUBRO
[Angélica Freitas]
escrever um poema sem calor em são paulo
um poema sem ação: sem carros, sem avenida paulista
quando eu morava na augusta, escrevia poemas sobre a augusta
a augusta não me deixava dormir
(escrever um poema em que se durma na augusta
e sobretudo, escrever um poema sobre dormir
sem você.) esta é a primavera fajuta da delicadeza
(não consigo terminar este poema).
À MULHER CONSAGRADA A IEMANJÁ
[Cidinha da Silva]
Amada
Não procure poemas teus
Nesse cascalho de bobagens minhas
Enquanto te amei
Confesso
Não escrevi poemas a ti
Ocupada demais estive
Em ser feliz
PARA O MEU AMANTE VOLTANDO PARA SUA ESPOSA
[Anne Sexton, tradução de Adelaide Ivánova]
Ela está bem aqui.
Ela foi cuidadosamente esculpida para você
saída de sua infância
saída dentre seus cem colegas de escola preferidos.
Ela sempre esteve aqui, meu bem.
Ela é de fato extraordinária.
Fogos de artifício no meio do sempre maçante Fevereiro
e tão real como uma panela de ferro fundido.
Vamos ser sinceros, eu fui passageira.
Um artigo de luxo. Um veleiro vermelho-brilhante no cais.
Meu cabelo para fora da janela do carro, esvoaçante como fumaça.
Mariscos fora de época.
Ela é mais do que isso. Ela é o que você tem de ter,
ela semeou seu crescimento prático, tropical.
Ela não é uma experiência. Ela é toda harmonia.
Ela cuida para que no bote salva-vidas haja remos e ganchos,
coloca flores do campo na janela para o café-da-manhã,
ao meio-dia senta-se à roda do oleiro,
criou três filhos sob a lua,
três querubins desenhados por Michelangelo,
fez isso com as pernas abertas
nos terríveis meses na capela.
Se você olhar para cima, as crianças estão lá
como balões delicados que descansam no teto.
Ela também carregou cada uma pelo corredor
depois do jantar, suas cabeças inclinadas,
duas pernas protestando, íntimas, pessoa contra pessoa,
o rosto corado com uma canção e soninho.
Eu devolvo seu coração.
Eu dou meu consentimento –
para o detonador dentro dela, latejando
na lama com raiva, para a sua cadela interior
e o enterro das suas feridas –
para enterrar viva a ferida, pequena e vermelha –
para a pálida tremelicante labareda debaixo de suas costelas,
para o marinheiro bêbado que aguarda em seu pulso esquerdo,
para o joelho materno, para a meia,
para a cinta-liga, para a chamada –
a estranha chamada
você vai se esconder nos braços e nos seios
e puxar a fita cor de laranja do cabelo dela
e atender a chamada, a estranha chamada.
Ela é tão nua e única
Ela é a soma de você mesmo e o seu sonho.
Escale-a como um monumento, passo a passo.
Ela é sólida.
Quanto a mim, sou uma aquarela.
Eu evaporo.
SEU NOME
[Fabrício Corsaletti]
Se eu tivesse um Bar ele teria seu nome;
Se eu tivesse um barco ele teria seu nome,
Se eu comprasse uma égua daria a ela seu nome;
Minha cadela imaginária tem o seu nome;
Se eu enlouquecer passarei as tardes repetindo seu nome;
Se eu morrer velhinho, no suspiro final balbuciarei o seu nome;
Se for assassinado com a boca cheia de sangue gritarei o seu nome;
Se encontrarem o meu corpo boiando no mar, no meu bolso haverá um bilhete com o seu nome;
Se eu me suicidar, ao puxar o gatilho pensarei no seu nome;
A primeira garota que beijei tinha o seu nome;
Na sétima série eu tinha duas amigas com o seu nome;
Antes de você tive três namoradas com o seu nome;
Na rua há mulheres que parecem ter o seu nome;
Na locadora que freqüento tem uma moça com o seu nome;
Às vezes as nuvens quase formam o seu nome;
Olhando as estrelas eu sempre consigo desenhar o seu nome;
O último verso do famoso poema de Eloá poderia muito bem ser o seu nome;
Apolineris escreveu poemas a lua porque na loucura da guerra não conseguia lembrar o seu nome;
Não entendo porque Chico Buarque não compôs uma música para o seu nome;
Se eu Fosse um travesti usaria o seu nome;
Se um dia eu mudar de sexo adotarei o seu nome;
Minha mãe me contou que se eu tivesse nascido menina teria o seu nome;
Se eu tiver uma filha ela terá o seu nome;
Minha senha do e-mail já foi o seu nome;
Minha senha do banco é uma variação do seu nome;
Tenho pena dos seus filhos porque em geral dizem mãe ao invés do seu nome;
Tenho pena dos seus pais porque em geral dizem filha ao invés do seu nome;
Tenho muita pena dos seus ex-maridos porque associam o termo ex-mulher ao seu nome;
Tenho inveja do Oficial de Registro que datilografou pela primeira vez o seu nome;
Quando fico bêbado falo muito o seu nome;
Quando estou sóbrio me controlo para não falar demais o seu nome;
É difícil falar de você sem mencionar o seu nome;
Uma vez sonhei que tudo no mundo tinha o seu nome;
Coelho tinha o seu nome, xícara tinha o seu nome, teleférico tinha o seu nome;
No índice aromático da minha biografia, haverá milhares de ocorrências do seu nome;
Na falta de corda para onde olha o luthier se não para o infinito do seu nome;
Algumas professoras da USP seriam menos amargas se tivessem o seu nome;
Detesto o trabalho porque me impede de concentrar no seu nome;
Cabala é uma palavra linda, mas não chega aos pés do seu nome;
No cabo da minha bengala gravarei o seu nome;
Não posso ser Niilista enquanto existir o seu nome;
Não posso ser Anarquista sem suplicar a declaração do seu nome;
Não posso ser Comunista se tiver que compartilhar o seu nome;
Não posso ser Fascista se não quero impor a outros o seu nome;
Não posso ser capitalista se não desejo nada além do seu nome;
Quando eu saí da casa dos meus pais fui atrás do seu nome;
Morei três anos num bairro que tinha o seu nome;
Espero nunca deixar de te amar para não esquecer o seu nome;
Espero que você nunca me deixe para eu não ser obrigado a esquecer o seu nome;
Espero nunca te odiar para não ter que odiar o seu nome;
Espero que você nunca me odeie para eu não ficar arrasado ao ouvir o seu nome;
A literatura não me interessa tanto quanto o seu nome;
Quando a poesia é boa é como o seu nome;
Quando a poesia é ruim tem algo do seu nome;
Estou cansado da vida, mas isso não tem nada a ver com o seu nome;
Estou escrevendo o 58º verso sobre o seu nome;
Talvez eu não seja um poeta a altura do seu nome;
Por via das dúvidas vou acabar o poema sem dizer explicitamente o seu nome."
DATE DE BICILETA PELO RECIFE
[Agnes Souzza]
tu vai me dever um beijo
toda vez que a gente passar por uma
drogasil
DE TRÁS PARA FRENTE
[Antonio Cícero]
O amante,
Cabeça tronco membro
Eretos para o amado,
Não o decifra um só instante.
Eu mesmo ainda me lembro:
O amante é devorado.
Já o amado,
Por mais ignorante e indiferente,
Decifra o seu amante
De trás pra frente.
MEU TRABALHO
[Raymond Carver, tradução de Cide Piquet]
Ergo os olhos e os vejo descerem
para praia. O jovem marido
usa um suporte para carregar o bebê.
Isso deixa as mãos livres
para que possa segurar a mão de sua mulher
e balançar a outra. Qualquer um pode ver
como são felizes. E íntimos. E seguros.
São mais felizes do que qualquer um, e sabem disso.
Estão satisfeitos por isso, e humildes.
Caminham até o fim da praia
e somem de vista. É isso, penso,
e volto para essa coisa que rege
a minha vida. Mas em alguns minutos
eles voltam caminhando pela praia.
A única coisa diferente
é que trocaram de lado.
Agora ele está do lado oposto dela,
o lado do oceano. Ela está do lado de cá.
Mas continuam de mãos dadas. Até mais
apaixonados, se é que isso é possível. E é.
Eu mesmo já estive no lugar deles.
A caminhada foi modesta, quinze minutos
para um lado da praia, quinze de volta.
Eles tiveram de encontrar seu caminho passando
por cima das pedras e contornando imensos troncos
que o mar derrubou quando estava agitado.
Eles caminham calmamente, devagar, de mãos dadas.
Sabem que o mar está bem ali,
mas estão tão felizes que o ignoram.
O amor em seus rostos jovens. O amor que irradiam.
Talvez ele dure para sempre. Se tiverem sorte,
se forem bons, e pacientes. E cuidadosos. Se
continuam se amando sem restrições
Se forem sinceros um com o outro – isso, acima de tudo.
E eles serão, é claro, eles serão,
e sabem que serão.
Volto ao meu trabalho. Meu trabalho volta para mim.
Um vento se agita sobre a água.
CIÚMES
[Ana Cristina Cesar]
Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma
Tão distraidamente.
abril/68