Keats fev.21

 

Considerado o último dos poetas românticos ingleses, John Keats (1795-1821) completa hoje a efeméride de 200 anos de seu falecimento precoce, aos 25 anos, decorrente de uma tuberculose. “Aqui jaz Alguém Cujo Nome foi escrito Na Água”, diz o texto que está cravado no túmulo do poeta.

Centenas de anos depois, o poeta inglês ganhou tradução e reestruturação nas mãos do concretista Augusto de Campos, que completou 90 anos neste mês. Celebrando a poesia de Keats através da tradução sempre singular de Augusto de Campos, o Pernambuco selecionou poemas de Keats traduzidos pelo brasileiro.

 

AO GATO DA SRA REYNOLDS

Gato! que já passaste o grande climatério,
          Quantos ratos e camundongos já comeste?
Que petiscos roubaste? Ergue-me o olhar, reveste
          De verde lânguido os teus olhos de mistério.

Alça as orelhas de veludo, mas não queiras
Fincar em mim as tuas úngulas latentes,
Faz teu meigo miado e conta as sorrateiras
Caças de ratos, peixes, pintos nos teus dentes.

Não baixes os teus olhos, nem lambas agora
As patas, apesar da asma e dos apuros
Da cauda cetinosa que te falta; e embora

As servas te enxotassem com castigos duros,
Teu pêlo ainda é suave e lembra como outrora
Te esquivavas dos cacos de vidro pelos muros.

 

ODE A UM ROUXINOL

I

Meu peito dói; um sono insano sobre mim
Pesa, como se eu me tivesse intoxicado
De ópio ou veneno que eu sorvesse até o fim,
Há um só minuto, e após no Letes me abismado:
Não é porque eu aspire ao dom de tua sorte,
É do excesso de ser que aspiro em tua paz –
Quando, Dríade leve-alada em meio à flora,
Do harmonioso recorte
Das verdes árvores e sombras estivais,
Lanças ao ar a tua dádiva sonora.

II

Ah! um gole de vinho refrescado longamente
Na solidão do solo muito além do chão,
Sabendo a flor, a seiva verde e a relva quente,
Dança e Provença e sol queimando na canção!
Ah! uma taça de luz do Sul, plena e solar,
Da fonte de Hipocrene enrubescida e pura,
Com bolhas de rubis à beira rebordada
Nos lábios a brilhar,
Para eu saciar a sede até chegar ao nada
E contigo fugir para a floresta escura.

III

Fugir e dissolver-me, enfim, para esquecer
O que das folhas não aprenderás jamais:
A febre, o desengano e a pena de viver
Aqui, onde os mortais lamentam os mortais;
Onde o tremor move os cabelos já sem cor
E o jovem pálido e espectral se vê finar,
Onde pensar é já uma antevisão sombria
Da olhipesada dor,
Onde o Belo não pode erguer a luz do olhar
E o Amor estremecer por ele mais que um dia.

IV

Adeus! Adeus! Eu sigo em breve a tua via,
Não em carro de Baco e guarda de leopardos,
Antes, nas asas invisíveis da Poesia,
Vencendo a hesitação da mente e os seus retardos;
Já estou contigo! suave é a noite linda,
Logo a Rainha-Lua sobe ao trono e luz
Com a legião de suas Fadas estelares,
Mas aqui não há luz,
Salvo a que o céu por entre as brisas brinda
Em meio à sombra verde e ao musgo dos lugares.

V

Não posso ver as flores a meus pés se abrindo,
Nem o suave olor que desce das ramagens,
Mas no escuro odoroso eu sinto defluindo
Cada aroma que incensa as árvores selvagens,
A impregnar a grama e o bosque verde-gaio,
O alvo espinheiro e a madressilva dos pastores,
Violetas a viver sua breve estação;
E a princesa de maio,
A rosa-almíscar orvalhada de licores
Ao múrmuro zumbir das moscas do verão.

VI

Às escuras escuto; em mais de um dia adverso
Me enamorei, de meio-amor, da Morte calma,
Pedi-lhe docemente em meditado verso
Que dissolvesse no ar meu corpo e minha alma.
Agora, mais que nunca, é válido morrer,
Cessar, à meia-noite, sem nenhum ruído,
Enquanto exalas pelo ar tua alma plena
No êxtase do ser!
Teu som, enfim, se apagaria em meu ouvido
Para o teu réquiem transmudado em relva amena.

VII

Tu não nasceste para a morte, ave imortal!
Não te pisaram pés de ávidas gerações;
A voz que ouço cantar neste momento é igual
À que outrora encantou príncipes e aldeões:
Talvez a mesma voz com que foi consolado
O coração de Rute, quando, em meio ao pranto,
Ela colhia em terra alheia o alheio trigo;
Quem sabe o mesmo canto
Que abriu janelas encantandas ao perigo
Dos mares maus, em longes solos, desolado.

VIII

Desolado! a palavra soa como um dobre,
Tangendo-me de ti de volta à solidão!
Adeus! A fantasia é véu que não encobre
Tanto como se diz, duende da ilusão.
Adeus! Adeus! Teu salmo agora tristemente
Vai-se perder no campo, e além, no rio silente,
Nas faldas da montanha, até ser sepultado
Sob o vale deserto:
Foi só uma visão ou um sonho acordado?
A música se foi – durmo ou estou desperto?


AO LER, PELA PRIMEIRA VEZ, O HOMERO DE CHAPMAN

Vi reinos de ouro, vislumbrei na mais obscura
Face da terra impérios com diversa gente
E me acerquei também das ilhas do ocidente:
Que aos poetas brindou Apolo com brandura.

Sabia das legiões perdidas na lonjura
Dos tempos, de que outrora Homero foi regente;
Porém seu ar sereno eu o aspirei somente
Ouvindo Chapman, na versão altiva e pura:

Então me vi como quem capta o resplendor
De um novo astro no céu, em solidão tamanha
Como a do audaz Cortez, com olhos de condor,

Ante o Pacífico – seus homens numa estranha
Premonição a entreolhar-se, com temor –,
Silente, em Darién, do alto da montanha.