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Releio o capítulo “Natureza amoral”, do livro Os dentes da galinha, de Stephen Jay Gould. Estou de volta ao século XIX, época em que os naturalistas, imbuídos de teologia, procuravam explicar por que a criação divina, que deveria espelhar o poder, a bondade e a sabedoria de Deus, se revelava aos homens pela crueldade sem sentido de algum animal.

Guardo para depois a conversa sobre os teólogos naturalistas do século XIX, e escolho, apoiado na variedade de comportamento dos insetos, uma situação de confronto, esperteza e oportunismo.

Fácil a escolha, os marimbondos. Classificados de ichneumonídeos pelos entomologistas, a classe inclui mais espécies do que todos os vertebrados juntos.

Segundo Stephen Jay Gould, o marimbondo passa a vida de adulto a voar livremente pelo mundo. Mas durante o período de vida em que é ovo e depois larva, vive como parasita. Alimenta-se do corpo de outro inseto, quase sempre pertencente a grupos da mesma espécie. O bebê marimbondo se alimenta, informa Gould, de outra larva, onde a mamãe marimbondo depositou o ovo.

Larvas de borboletas ou de mariposas podem servir de hotel para os ichneumonídeos, e também a multidão de pulgões e de aranhas.

Do alto do seu voo, a fêmea do marimbondo localiza um hospedeiro apropriado. Qual avião caça em rasante, mergulha e pica o alvo com seu ovipositor. Ali deposita os ovos.

Com essa operação, a fêmea marimbondo dá início ao longo e fatídico espetáculo do sacrifício do hospedeiro. Transforma a larva ou o inseto eleitos em provedor de comida para sua cria. As fêmeas de marimbondo podem tanto depositar o ovo no interior do hospedeiro (caso de endoparasitismo), quanto diretamente sobre o corpo (caso de ectoparasitismo).

No último caso, surge um problema para a precavida mamãe marimbondo. O hospedeiro pode ser um inseto peripatético, desses de comportamento imprevisível e irrequieto que, ao caminhar ou voar de cá para lá ou de lá para cá, desaloja facilmente o ovo. A fêmea do ichneumonídeo não se perturba: ao mesmo tempo em que deposita o ovo, injeta uma toxina que paralisa o hospedeiro.

A paralisia pode ser permanente.

O inseto hospedeiro jaz vivo, porém imóvel, tendo o agente da sua futura e lenta destruição aprisionado ao ventre. Enquanto o tempo e o que mais for chocam o ovo do marimbondo, a lagarta ou o inseto inertes se contorcem de dor.

Abrem-se as cortinas do palco onde se encena o macabro festim do penúltimo ato: a larva do marimbondo, para sobreviver e crescer forte e robusta, vai escavando o corpo do hospedeiro.

Um único cuidado! a morte do hospedeiro tem de ser lenta. Se for súbita, o corpo alheio não trará mais benefício alimentar para o parasita.

O parasita torna-se seletivo e atento a detalhes fisiológicos. Come primeiro as porções gordurosas e os órgãos digestivos do hospedeiro, mantendo-o vivo em outras partes. Até quando for necessário, a larva do marimbondo preservará intactos coração e sistema nervoso central, órgãos imprescindíveis da vida do hospedeiro inerte.

Por fim, chega o dia de liberdade da larva do marimbondo. Ela mata o hospedeiro e alça voo. Abandona-o com os contornos dum invólucro vazio.

Não deixa de ser um equívoco antropomórfico querer enxergar esse combate de vida e morte pelos olhos dos naturalistas teólogos do século XIX. É querer ver a guerra entre o Dragão da Maldade e o Santo Guerreiro num lugar em que só o ser humano é capaz de compreendê-la em seu próprio interesse e benefício.

Stephen Jay Gould toma caminho interpretativo diferente. Escreve ele: “Somos incapazes de descrever esse aspecto da história natural, a não ser como um épico medieval, onde o tema do soturno horror se combina com o da fascinação. Acabamos não só com pena da lagarta, como também com admiração pela eficiência do marimbondo”. E completa: “Na maioria dessas descrições épicas percebo dois temas básicos: os violentos esforços da presa e a implacável eficiência dos parasitas”.

A fábula não tem fecho de ouro nem moral. A rima final que encontro é pobre e fatal, tão pobre e tão fatal quanto a década que nos toca viver: de um lado, a resistência e, do outro, a eficiência.

Na década que se inicia, o futuro hospedeiro está querendo imitar o estratagema de fuga da lagarta da família das Hapalia, mesmo sabendo que tanto a imitação quanto a fuga são também vãs.

A lagarta da família das Hapalia, quando atacada em voo rasante pela fêmea do marimbondo Apanteles machaeralis, se joga súbita e precipitadamente da folha onde vive. Presa apenas por um fio sedoso, fica suspensa no ar.

Sob a luz do sul e ao luar, brilha o fio sedoso, rastro de um quase suicídio.

Conclui Gould: “Muitas vezes o marimbondo desce pelo fio e, de qualquer maneira, deposita os ovos na lagarta”.