"os desaparecidos são justos. / e assim sumimos nós, também.", diz o poema abaixo, do alemão Hans Magnus Enzensberger. Escrito nos anos 1960, fala diretamente ao Brasil de 2019, marcado pela crueldade com as vítimas da ditadura e com a memória delas. A tradução do poema é de Adelaide Ivánova. Depois da versão original, uma nota biográfica sobre o poeta.
Você pode ver fotos e conhecer a história de pessoas desaparecidas na ditadura no portal Memórias da Ditadura, criado pelo Instituto Vladimir Herzog.
os desaparecidos
para nelly sachs
não foi a terra que os engoliu. foi o ar?
como areia, eles são muitos, mas em areia
não foi no que se transformaram, foi em nada. em massa
foram esquecidos. muitos e de mãos dadas,
como minutos. mais que nós,
mas esquecidos. não listados,
misturados à poeira, desaparecidos
estão seus nomes, suas colheres, seus sapatos.
eles não nos fazem arrepender-nos. ninguém consegue
se lembrar deles: nasceram,
fugiram, morreram? procurados
eles nunca foram. sem falhas
é o mundo, ainda assim unido
por aquilo que não lhe habita,
pelos desaparecidos. eles estão em todos os lugares.
sem os ausentes, nada existiria.
sem os fugitivos, nada seria sólido.
sem os esquecidos, nada seria seguro.
os desaparecidos são justos.
e assim sumimos nós, também.
die verschwundenen
für nelly sachs
nicht die erde hat sie verschluckt. war es die luft?
wie der sand sind sie zahlreich, doch nicht zu sand
sind sie geworden, sondern zu nichte. in scharen
sind sie vergessen. häufig und hand in hand,
wie die minuten. mehr als wir,
doch ohne andenken. nicht verzeichnet,
nicht abzulesen im staub, sondern verschwunden
sind ihre namen, löffel und sohlen.
sie reuen uns nicht. es kann sich niemand
auf sie besinnen: sind sie geboren,
geflohen, gestorben? vermißt
sind sie nicht worden. lückenlos
ist die welt, doch zusammengehalten
von dem was sie nicht behaust,
von den verschwundenen. sie sind überall.
ohne die abwesenden wäre nichts da.
ohne die flüchtigen wäre nichts fest.
ohne die vergessenen nichts gewiß.
die verschwundenen sind gerecht.
so verschallen wir auch.
Hans Magnus Enzensberger é um escritor alemão, nascido em 1929. Como todo adolescente alemão dos anos 1930, foi forçado a se alistar na Juventude Hitlerista, da qual acabou sendo expulso por ser “respondão e questionador”. Este poema está em blindenschrift (braile, em português), quarto livro de poemas do autor, publicado em 1967 – época de Guerra Fria, corrida armamentista nuclear, Muro de Berlim, Guerra do Vietnã, anticomunismo, Movimento dos Direitos Civis. Marxista e apoiador dos movimentos estudantis e revolucionários dos anos 1960, Enzensberger ganhou inúmeros prêmios, morou na Rússia e em Cuba, produziu ensaios sobre teoria socialista da mídia e segue escrevendo até hoje, aos 89 anos.