A última quinta-feira (16) marcou os 15 anos de falecimento do crítico literário, ensaísta, tradutor e poeta Haroldo de Campos (1929-2003). Intelectual e artista produtivo, assina mais de 30 livros. Era um amante com o qual a linguagem procriou apaixonadamente, para usar a expressão de Guimarães Rosa (ainda que a procriação em ambos se dê de diferentes formas). O concretismo, o engajamento na divisa antropofágica para lidar com a tradição (em linhas gerais, a mastigação metafórica do que é daqui e do que é estrangeiro), o resgate de autores esquecidos (como Sousândrade ou Gregório de Matos).
O esforço da tradução era, para ele, uma "transcriação": o tradutor era um recriador da obra. O caso do gênese - Haroldo estudou por cinco anos o hebraico para traduzir o primeiro livro bíblico de forma poética - é exemplar (segue um trecho abaixo); realizara aquilo que Nicanor Parra define como o ofício do tradutor, a expropriação radical dos poemas originais.
Deixamos aqui uma pequena seleta poética feita pelo nosso editor-assistente, Igor Gomes, como lembrança da data.
***
Gênese I [fragmento]
No começar Deus criando
O fogoágua e a terra
E a terra era lodo torvo
E a treva sobre o rosto do abismo
E o sopro-Deus
Revoa sobre o rosto da água
E Deus disse seja luz
E foi luz
E Deus viu que a luz era boa
E Deus dividiu
Entre a luz e a treva
E Deus chamou à luz dia
e à treva chamou noite
E foi tarde e foi manhã
Dia um
***
1984: Ano 1, Era de Orwell
enquanto os mortais
aceleram urânio
a borboleta
por um dia imortal
elabora seu vôo ciclâmen
*
uma dança
de espadas
esta
escrita
delirante
lâminas cursivas
a lua
entre dois
dragões
com uma haste
de bambu
passar
por entre lianas
sem desenredá-las
(de A educação dos cinco sentidos)
***
horácio contra horácio
ergui mais do que o bronze ou que a pirâmide
ao tempo resistente um monumento
mas gloria-se em vão quem sobre o tempo
elusivo pensou cantar vitória:
não só a estátua de metal corrói-se
também a letra os versos a memória
— quem nunca soube os cantos dos hititas
ou dos etruscos devassou o arcano?
o tempo não se move ou se comove
ao sabor dos humanos vanilóquios —
rosas e vinho — vamos! — celebremos
o instante a ruína a desmemoria
(de Crisantempo: no espaço curvo nasce um)
***
O instante
o instante
é pluma
seu holograma
radia estável
como quem olha pelo cristal
do tempo
feixe fixo
de luz
(já não se vê se o olho deixa sua seteira)
prisma
o sol
chove
de um teto
zenital
elipse: um estilo de persianas
(de Signatia quasi coelum = signância quase céu)
***
circum-lóquio [fragmento]
(pur troppo non allegro) sobre o neoliberalismo terceiro-mundista
laisser faire laisser passer
5.
o neoliberal
sonha um mundo higiênico:
um ecúmeno de ecônomos
de economistas e atuários
de jogadores na bolsa
de gerentes
de supermercado
de capitães de indústria
e latifundiários
de banqueiros
-banquiplenos ou
banquirrotos
(que importa?
desde que circule
auto-regulante
o necessário
plusvalioso
numerário)
um mundo executivo
de mega-empresários
duros e puros
mós sem dó
mais atentos ao lucro
que ao salário
solitários (no câncer)
antes que solidários:
um mundo onde deus
não jogue dados
e onde tudo dure para sempre
e sempremente nada mude
um confortável
estável
confiável
mundo contábil
6.
(a
contramundo o
mundo-não
-mundo cão-
dos deserdados:
o anti-higiênico
gueto dos
sem-saída
dos excluídos pelo
deus-sistema
cana esmagada
pela moenda
pela roda dentada
dos enjeitados:
um mundo-pêsames
de pequenos
cidadãos-menos
de gente-gado
de civis
subservis
de povo-ônus
que não tem lugar marcado
no campo do possível
da economia de mercado
(onde mercúrio serve ao deus /mamonas)
7.
o neoliberal
sonha um admirável
mundo fixo
de argentários e multinacionais
terratenentes terrapotentes /coronéis políticos milenaristas (cooptados) /do perpétuo status quo:
um mundo privé
palácio de cristal
à prova de balas:
bunker blau
durando para sempre -festa /estática (ainda que se sustente sobre fictas
palafitas
e estas sobre uma lata
de lixo)
(A íntegra do poema você encontra AQUI)