Lembro que a imprensa usou a expressão “grande dama” ao anunciar a vinda de Lillian Ross (1918-2017) para a Flip em 2006.
Tinha já passado sete décadas na redação da New Yorker, contribuindo para formar um tipo de apuração e escrita que influenciou gerações, chamado mais tarde de jornalismo literário, quando a matéria de não ficção se soma a uma forma imaginativa de contar.
Só àquela altura saía título seu traduzido por aqui, com a confirmação de que estaria pelo Brasil: Filme, meio século depois da edição em inglês, considerado por muitos ainda o melhor livro sobre os bastidores de Hollywood. Os autores homens do gênero, posteriores ou rivais seus, como Truman Capote, Gay Talese e Tom Wolfe, eram já razoavelmente divulgados no mercado editorial brasileiro. Autora mulher que também atuava nessa seara, Joan Didion até tinha sido publicada, no entanto sem a mesma repercussão que os colegas. Nenhum outro de Lillian Ross chegou ao Brasil depois de 2006.
Em Paraty, a minha chance era, da plateia, ouvi-la com admiração. Não imaginava que ia me transformar numa de suas fontes no que me pareceu uma apuração brasileira vasta, tudo o que era novo visto como relevante.
No dia da abertura, como era tradição da festa literária, os convidados participavam de um encontro oferecido por um dos herdeiros da família real, era o almoço do príncipe. Estava ali como mediadora de uma das conversas do programa e, pouco enturmada, me sentei numa mesa ainda vazia. Em minutos, a senhorinha com menos de 1,60m, cabelos muito curtos cacheados, se sentou ao meu lado e puxou conversa.
–O que é isso?
–Guaraná, respondi.
–É típico do Brasil, não?
Expliquei que tipo de refrigerante era aquele.
–E isso aqui?
–Fitinhas do Bonfim. Tem de amarrar no pulso e fazer três pedidos.
Lillian Ross pediu ajuda ao filho adotivo, Eric, que a acompanhava em todas as viagens, para colocar uma de cor amarela. Continuei a responder perguntas sobre família real, índios e negros, livros e revistas literárias, e me dava conta de que a maior repórter do mundo era uma mulher pequenina com uma grande capacidade de fazer perguntas, a empatia tão gigante quanto a curiosidade. Não era afetada, tampouco distante como podia fazer supor a tal expressão “a grande dama”, hoje tão inapropriada quanto “musa”. Aos 88, com roupas despojadas e sapatilhas leves, insistia em ouvir.
Um mês depois de nosso encontro, não mais que isso, comecei a receber por correio pacotes de Nova York. A seu pedido, suas editoras enviaram exemplares de livros seus.
Portrait of Hemingway, seu primeiro grande texto em 1950, é um perfil biográfico feito de detalhes vívidos, sem deixar nada incômodo de fora e, no entanto, sem julgar o autor de O velho e o mar. A obra de impacto seguinte, em 1952, foi o mencionado Filme, escrito durante a filmagem da versão em cinema de O emblema rubro da coragem, de Stephen Crane, com direção de John Huston. Ficou um ano na apuração, quando teve a sacada de entender os integrantes do set como personagens de um romance, acompanhando seu desenvolvimento e as relações que firmavam enquanto o filme era rodado. Num estilo contido, consegue fazer emergir a angústia, a vaidade e a fúria criativa. Antologias de textos seus para a New Yorker constituíram o mais importante de sua obra a partir da década de 1960. A mais recente, Reporting Always: writing from the New Yorker (2015), eu me lembro de ter comprado ainda na pré-venda na Amazon. Gostava de acompanhar seus passos, cada vez mais raros conforme avançava a idade.
Nota-se nos livros o que resultava de sua abordagem direta. Lillian Ross nunca tinha trocado o bloco de notas por gravador. Dizia que registrar em áudio era uma operação sem vida. Em vez de ocupar o entrevistado com uma pergunta atrás da outra, preferia escutá-lo dizer o que desejava falar, sem interrupção. O imprescindível, segundo recomendava a novatos na área, era envolver-se quimicamente com a situação. O que não significava aparecer no texto; exigia-se discrição absoluta, o que prevalecia era o assunto, não o autor. O seu posicionamento podia ser aferido pelo tom, pela frase do entrevistado que buscava realçar, ou ainda pelo contexto que oferecia. Insistia que um repórter não pode saber o que alguém pensa ou sente, apenas demonstrar possíveis pensamentos e sentimentos a partir da ação e do diálogo. Essas recomendações a colocavam em frontal desacordo com Capote, a quem acusava de fazer autopromoção com seu A sangue frio, no seu entendimento um romance, não um romance de não ficção, surgido a partir de uma manipulação cruel dos entrevistados.
Tampouco Lillian Ross ficou sem críticas. Seu perfil de um Hemingway que bebia e falava demais foi visto como uma alta traição da amizade mantida com o escritor, que no entanto considerou-o fiel, ainda que desconcertante. Sobre sua grande reportagem em Hollywood, por exemplo, diziam que tinha entrado em excesso naquele mundo, com resultado pouco profissional.
Em resposta, ela repetia que os grandes repórteres eram o oposto da figura de um farsante, exerciam o ofício com franqueza.