Bastidores1 A nov17

 

O texto abaixo fala dos bastidores do livro Existe índio gay? A colonização das sexualidades indígenas no Brasil, de Estêvão Fernades, recentemente lançado pela Editora Prisma.

 

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Prazer, sou um antropólogo. Em algum momento da minha vida profissional, acabei esbarrando no tema “homossexualidade indígena”, ao qual venho me dedicando há alguns anos. Engraçado como, ao longo do percurso, fui aprendendo mais sobre mim mesmo e sobre o tipo de ciência que pratico do que, necessariamente, apenas sobre as muitas formas de se viver a sexualidade nos (vários) povos indígenas brasileiros.

O percurso que me trouxe até aqui começou sem grandes pretensões, mas com largos tropeços. Estudei e convivi com povos indígenas desde o comecinho da graduação em Ciências Sociais, no final da década de 1990 e estranhei quando, já no doutorado (quase duas décadas depois), notei a falta de textos mais sistematizados sobre relações homodesejantes em povos indígenas no país. Até então, eu havia conhecido inúmeros indígenas os quais, aos meus olhos, classificaria como lésbicas, gays, bis, trans... Afinal, onde estavam eles na literatura? Com essa pergunta aparentemente simples, a pesquisa começou e, espero sinceramente, nunca vai acabar – e este texto é uma reflexão sobre esse tipo de coisas: não tanto sobre homossexualidade(s) ou povos indígenas mas sobre como, do alto de nossa arrogância intelectual, simplesmente optamos por não prestar mais atenção realmente ao que os outros podem nos dizer e ensinar, ocupados que estamos, em nossas cabeças, em falar sobre eles, ou no lugar deles.

Retomando o pensamento, comecei a me interrogar sobre por que esses indígenas LGBTI seriam relativamente invisíveis à literatura especializada. Uma das conclusões a que cheguei foi que, historicamente, de várias formas, o modelo de sexualidade heteronormativo, moderno, monogâmico e ocidental foi imposto aos povos indígenas, como uma das técnicas empregadas pelo colonialismo. Em larga medida, as justificativas para isso eram religiosas, filosóficas ou científicas. Gente boa, cheia de boas intenções, ensinando aos povos indígenas como era errado ser quem eles eram – afinal, é disso que se trata o colonialismo... Em resumo, aos indígenas foi ensinado que o “nosso” modelo de sexualidade, de moral e de família era o único possível, para salvá-los do inferno, para ajudar a moldar os valores da “civilização” ou para resguardar a “raça” brasileira. Sim, as pessoas acredit(av)am: muitos indígenas foram mortos ou são agredidos em nome de Deus e da ciência, sem que sequer se question(ass)e sobre os efeitos disso sobre suas culturas.... Aos indígenas, ensinamos a intolerância e a homofobia, coisas que antes não existiam. Escreve Oswald de Andrade que Quando o português chegou/Debaixo duma bruta chuva/Vestiu o índio/Que pena!/Fosse uma manhã de sol/O índio tinha despido/O português. Teria o português e, posteriormente, o brasileiro, possivelmente se despido também de sua carga de preconceitos e da mania obsessiva em controlar o corpo e os amores daquele povo tão diverso. Tivessem(os) tão-somente ouvido o que essas nações sempre nos disseram (e ainda gritam, a plenos pulmões), aprenderíamos que é possível e necessário pensar fora de nossas caixinhas de classificação. Que diferença não justifica desigualdade, extermínio ou dominação.

Como pesquisador, ler e ouvir tantos relatos de abusos em nome da moral ou da ciência, empregada por “gente de bem” (termo tão em profusão nestes dias confusos) me fez sair da pesquisa diferente do que entrei – como deve ser. Uma delas foi compreender que não nos devemos restringir nem pelo nosso conjunto limitado de disciplinas ou metodologias... Gênero não tem a ver só com gênero, assim como raça não diz respeito só à raça mas, também, a fatores que se entrecortam e se sobrepõem, como classe, trabalho, produção do conhecimento, dentre tantos outros. Este é, possivelmente, um dos fatores para desconfiar dos “textões” de internet e das certezas que temos do que pensamos e dizemos: uma vez que se complexificam nossas perguntas, o fio de Ariadne torna-se interminável. Uma boa pergunta, quase sempre, suscita outras perguntas, tão boas ou melhores que a primeira. Da mesma forma, passei a duvidar da rigidez de domínios específicos ou restritos a uma ciência – como se a realidade social coubesse, toda ela, em rótulos particulares como Filosofia, Antropologia, Sociologia ou História. Levar a sério essas divisões nos restringe e poda nossa criatividade e capacidade de escuta; não apenas na academia, mas de modo geral.

Acabei percebendo, ao fim e ao cabo, que este padrão de imposição de um sistema moral (e antes que você [não] pergunte, a ciência é, também, parte de um sistema moral) não se restringe aos povos indígenas, ou a um passado remoto: trata-se de se questionar sobre o poder, sobre a legitimidade de determinadas categorias sobre outras, de como e por que naturalizamos preconceitos, silenciamentos, subalternizações. Questionar sobre a naturalização de categorias de poder é o ato mais perigoso nestes tempos – e por isso mesmo, o mais necessário.