Se esta fosse uma entrevista sobre o livro Um teste de resistores (2014), eu começaria dizendo que às 14h18 do dia 10 de julho de 2017 eu saía da rua Maria Figueiredo rumo à Manoel da Nóbrega para entrevistar a poeta Marília Garcia. Mas em seu novo livro, Câmera lenta, lançado este mês pela Companhia das Letras, o gesto de referenciar e localizar as experiências, tão marcante na obra anterior, é deixado de lado.
Sua nova publicação, fruto de uma escrita longa, que durou nove anos, investe em outros experimentos e reúne muitos textos que, originalmente, foram escritos para uma situação de fala. Nesta conversa, Marília compartilha algumas questões centrais do seu novo trabalho, que parece destoar um pouco do percurso ensaístico trilhado pelo livro anterior.
Muito interessada na mutabilidade dos poemas e na sua capacidade de adaptação a diferentes contextos, a escritora aproxima sua prática da ideia de site specific das artes plásticas, em que as obras são criadas e planejadas de acordo com um espaço determinado, estabelecendo um diálogo. É o caso, por exemplo, do poema Tem país na paisagem, que deriva de uma fala da poeta apresentada em versões diferentes no Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), de 2016, e no ciclo de palestras performáticas em obras, organizado pela escritora Paloma Vidal.
Além disso, Marília comenta a preparação da antologia de Emmanuel Hocquard, prevista para ser lançada pela editora Luna Parque em novembro, e o impacto que este poeta francês representou na sua trajetória.
“Por que é tão difícil falar de poesia?”
Toda vez que eu vou falar sobre poesia me vem a mesma sensação de não conseguir falar. Quando você está escrevendo, você está vivendo aquilo. Quando você vai falar, você já está em um momento posterior, então me dá uma sensação de que esta fala é só uma paráfrase de uma coisa que eu não estou vivendo, que não está acontecendo neste momento. O Um teste de resistores foi um pouco isso, porque eu fui convidada para dar um depoimento sobre poesia, então eu resolvi fazer um texto sobre um poema que fosse um poema. Agora, sobre este livro novo eu já não sei, é a primeira vez que eu vou falar dele, então é mais difícil ainda.
& como foi o processo de escrita do Câmera lenta?
Em 2007, eu publiquei meu primeiro livro (20 poemas para o seu walkman) e, depois, publiquei mais dois: o Um teste de resistores, que são poemas sobre a escrita, mais ensaísticos, e o Engano geográfico (2012), que é um único poema longo. O Câmera lenta tem poemas desde 2008 até agora, então é um livro que eu estou escrevendo há muito tempo, teve várias caras e várias formas, passou por muita coisa. Depois do Teste de resistores, eu achei que não fosse mais publicá-lo, porque, de algum modo, o tom dele era diferente. Era como se eu estivesse fazendo outra coisa e não pudesse mais para voltar para aqueles poemas. Eu cheguei a pensar em fazer uma edição pirata, com uma data anterior, então ele estaria cronologicamente antes, e eu não venderia, colocaria em sebos, faria com que ele existisse de outra maneira. Mas depois ele mudou um pouco, eu incorporei outras coisas e cheguei a uma forma diferente da que tinha pensado
Essa ideia da edição pirata é interessante, mas parece também um gesto muito consciente de controle da própria obra.
No fim, é uma boutade, apenas uma brincadeira para tentar entender melhor o caminho da escrita. E essa ideia também me ajudou a ver que as coisas caminham paralelas, porque o Teste de resistores tem esse tom mais ensaístico, mas eu estava, ao mesmo tempo, escrevendo esses outros poemas, e eles foram convivendo, não são excludentes. Talvez seja mais interessante fazer desse jeito, ou foi o jeito possível, até para não controlar tanto, você tem razão.
Por outro lado, este livro não me parece tão descolado assim do Teste de resistores. Você acha eles muito diferentes?
O que eles têm em comum é que fazem parte de um momento em que eu comecei a ler os poemas em voz alta. Embora o 20 poemas para o seu walkman tenha essa relação com o som do walkman, eu vi que não funcionava lido em voz alta, os poemas tinham uma sintaxe estranha, sem muita repetição, não eram tão orais. Muitos textos do livro novo foram escritos para serem lidos, então estão ligados a uma fala, assim como o Teste de resistores tem essa história que eu contei. A relação entre eles passa por aí, eles foram escritores para serem falados. Além disso, por serem simultâneos, há temas e questões recorrentes que aparecem nos dois livros.
Tem país na paisagem é um desses poemas escritos para serem falados. Mas em vez de agregar as experiências de sua circulação, a versão do livro parece uma depuração do texto lido em palestras. Como se deu a escrita desse poema?
A primeira versão do experimento, digamos assim, era um diário, que foi uma experiência que fiz na França de fotografar uma ponte todos os dias e escrever sobre aquilo. A partir disso, eu preparei uma fala pra Abralic, que não era tão próxima desse poema, era mais extensa. Depois, no em obras (ciclo de palestras organizado pela poeta e pesquisadora Paloma Vidal), ela cresceu e mudou, né? A versão do livro, realmente, tem mais cara de poema, é mais sintética, perdeu os referenciais, por exemplo eu não falo que estou na França. O poema se adaptou um pouco ao livro, que é quase sem referencial, com exceção do epílogo, que é o texto da hélice. É o contrário do Teste de resistores, em que eu falo a partir de e sobre os lugares. No Tem país na paisagem eu queria tentar ver o tempo passando no gesto repetido de fotografar a ponte todos os dias, era uma tentativa de entrar numa pausa, ver, ouvir, quase como a câmera lenta, tentar parar e prestar atenção nas coisas, no infra-ordinário, esse conceito do Georges Perec. E eu tentei limpar esses referentes. Isso tem um pouco a ver com eu apresentar esses textos e sempre tentar pensar onde eu estou. Na Abralic, tinha a minha relação com a UERJ, local onde estudei, que passa por um momento complicado, então eu falei disso lá. Tem um pouco de site specific nesses processos, como nas artes plásticas que os artistas fazem um trabalho em um local específico e pensam nas características daquele lugar. Eu acho que, no momento em que esse poema entra no livro, ele tenta pensar no site specific do livro, ele tenta conversar com os outros poemas que estão ali.
Essa transformação que os textos sofrem, que se tornam visíveis pelas leituras e diferentes publicações, está mais relacionada a uma preocupação ou a uma despreocupação com a fixação do poema?
Com uma despreocupação, eu acho. E com essa possibilidade dele, em cada momento, dialogar com o lugar onde ele está, ir se adaptando. Mas, claro, no livro, ele vai ter um tipo de fixação que é diferente. No 20 poemas, da primeira pra segunda edição, eu mudei algumas coisinhas, mas mais relacionadas à leitura em voz alta. De algum modo, o livro cria essa fixação dos textos, mas me interessa essa possibilidade do texto ser mutante, porque ele é. Ainda mais se ele vai para uma fala em um lugar ou em outro, ele vai sendo contaminado, eu vou incorporando coisas que acontecem no dia. No caso do Câmera lenta, justamente por ser um livro que demorou nove anos, a maior parte dos poemas saiu em outros lugares; então desde uma versão que você encontra na internet, porque alguns estão online, até a versão do livro, é muito diferente. Eu tenho pensado bastante nessa ideia das artes plásticas que falei, a obra que é feita para um lugar determinado. Por outro lado, aqui tentei me desviar um pouco disso e criar um ambiente sem topônimos específicos, pensando nessa sensação que a gente tem hoje de receber as informações com muita rapidez, de estar simultâneo às coisas que estão acontecendo; tem o terrorismo, tem os terremotos, o mundo está de cabeça pra baixo, tudo ao mesmo tempo, mas você não sabe direito onde, a gente convive com isso também.
“Um dispositivo que produza a repetição / pode produzir novas formas de/ percepção?”
Não sei, é uma pergunta, né? Pode produzir? Acho que pode. O livro (Teste de resistores) tenta falar disso. Outra relação entre esses livros, aliás, são esses temas que voltam, que se repetem. Não só temas, mas sintagmas ou frases ou versos, que voltam quase como uma rima ao longo do livro, como se criassem uma rima distante. Eu não sei se eles produzem outras formas de percepção, mas acho que eles tentam criar relações dentro dos textos ou um tipo de ritmo.
Em uma entrevista de 2007, você dizia que, naquele momento, traduzir parecia ser mais prazeroso que escrever. Continua dessa forma?
Eu traduzia bem menos naquela época, então eu acho que agora é diferente. Há dez anos, eu não traduzia profissionalmente, traduzir era um momento de parar, pensar, de ter uma relação com as palavras muito específica, um tempo que eu tinha de calma, de perceber a linguagem, de me dar ferramentas para a escrita – eu traduzia para escrever também. Agora eu traduzo bem mais e com prazos curtos; às vezes, quero escrever um poema, mas já passei o dia inteiro traduzindo (ou escrevendo). A princípio, é super prazeroso, mas às vezes tem um prazo curto, e acaba sendo um ritmo diferente daquele da pausa, da reflexão.
Quando se deu o teu contato com a poesia do Emmanuel Hocquard & qual foi o impacto dessa leitura?
Eu li pela primeira vez na mediateca da Maison de France, no Rio. Eles têm uma biblioteca de poesia contemporânea muito boa, mesmo na França é difícil achar uma biblioteca com tanta coisa. O Rafael Viegas, que foi diretor de lá por muitos anos, foi responsável por montar essa biblioteca. A obra do Hocquard é imensa, ele publicou bastante, e eles têm quase tudo. Como exercício de leitura, eu traduzi o poema Dois andares com terraço e vista para o estreito, que vai entrar na edição da Luna Parque. É um poema longo, narrativo, em que ele conta uma viagem feita do sul da Espanha até Tânger, no Marrocos, lugar onde passou a infância. Eu tinha traduzido esse poema, não sei exatamente qual foi o momento, mas foi muito impactante o contato com a obra dele, que é grande e bastante misturada. Em um livro de poesia, ele reúne poemas mais longos, poemas mais curtos, prefácios, cartas... É uma obra muito metamórfica, vai se transformando de um livro para o outro; ele também publicou muitos livrinhos, plaquetes, coisas de vários formatos. Depois, eu fui pra França, fiz uma viagem para conhecê-lo, e resolvi escrever o Engano geográfico, que conversa com esse poema longo dele e é também um poema percurso. Eu tentei trabalhar com o tom dele, misturando as temporalidades, os espaços, quase outra versão da tradução, tentando incorporar os procedimentos.
Como vocês pensaram essa antologia que será lançada pela Luna Parque?
Pensamos num livro com cinco textos: dois mais ensaísticos, dois poemas longos e um poema curto. Dos ensaísticos, um é um livrinho chamado Minidicionário autobiográfico da elegia, que fala da elegia clássica e de um outro tipo de elegia, que seria a que ele trabalha. Então ele cria esse “minidicionário” para falar sobre os aspectos da elegia que interessa a ele. Ao mesmo tempo, é um texto super irônico, e ele encontra uma forma muito impressionante: um ensaio, no formato de dicionário, com verbetes que falam muito de questões pertinentes à obra dele. O outro texto é o Minha vida privada, feito de fragmentos, sobre poesia e literatura. Além desses, a gente selecionou dois poemas longos: o Dois andares com terraço e vista para o estreito e Ode não triunfal a Vila Nova de Foz Côa, sobre uma viagem que ele faz a Portugal, para um festival de poesia onde ele fica meio isolado e não consegue muito participar e se comunicar. Já o quinto texto é um poema sobre Fernando Pessoa que, de algum modo, dialoga com o texto anterior. Ele tem vários outros livros que a gente chegou a pensar em fazer, mas com a ideia da antologia de misturar textos mais críticos ou ensaísticos com poemas, os outros não funcionariam.