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O projeto de narrar a história recente da América Latina é o que primeiro chama a atenção em Soy loco por ti, América (Companhia das Letras), novo romance de Javier Arancibia Contreras. São, contudo, os quatro protagonistas – um obituarista talentoso, mas insosso na Argentina, um artista de renome confrontado com a sombra de seu passado na ditadura chilena, um jornalista sem escrúpulos ascendendo durante o processo de redemocratização no Brasil, um jovem da elite mexicana tentando implodir seu meio empregando a tecnologia – que conquistam com suas contradições e vidas improváveis. É a humanidade, enfim, e a imprevisibilidade da vida que Contreras conheceu nos tempos de repórter policial: “as mentes das pessoas são particularmente um poço escuro de complexidade e mistério”, diz o autor.

Por trás dos personagens a questionar seu papel na história – ainda que para se descobrir mero detalhe –, Contreras, brasileiro filho de chilenos, constrói o panorama dos anos 1960 aos atuais da América Latina, marcado pela guerra, regimes autoritários, relações de poder, desigualdade e resistência. E frente a isso, o que fazer? “Não dá para evitar ser subjugado pela realidade de cada país”, sugere o finalista do prêmio São Paulo de Literatura com Imóbile. “Dá, sim, para lutar, cada qual com suas armas, assim como os quatro personagens do livro.” Na conversa a seguir, Javier Arancibia Contreras fala sobre a composição de seu romance-fragmento, a relação entre história e ficção, sua própria identidade e a presença do atual contexto brasileiro na escrita.

Você já afirmou que o trabalho no jornalismo policial mudou sua percepção da humanidade. A escrita do livro proporcionou algo similar, ao passar por personagens com pontos de vista tão variados, um panorama representativo da nossa história ou se colocar diante de situações como guerra, tortura, ideais revolucionários?

Quando era repórter policial e vi coisas realmente duras, compreendi com o tempo que a vida tem um alto grau de imprevisibilidade e é cheia de truques, armadilhas e reviravoltas. E que as mentes das pessoas são particularmente um poço escuro de complexidade e mistério. Talvez isso tenha me levado a fazer a transição do jornalismo para a literatura. À minha maneira, tento pensar sobre isso, escrevendo. Pessoalmente, acho que todo livro tem que – ou, pelo menos, deveria – proporcionar novas percepções sobre assuntos importantes para o escritor naquele momento. Para mim, escrever um romance é como fazer uma longa reflexão. E, no momento em que refletia sobre o livro, esses temas da história recente da América Latina foram surgindo pouco a pouco na minha cabeça e me fizeram ir desdobrando o pensamento.

Em que momento definiu a abrangência do livro? Ficou intimidado com ela em algum momento?

A verdade é que quando me sento para tentar escrever algo novo eu mal sei sobre o que vou escrever. E quando começo a escrever eu não tenho ideia aonde vou chegar. Isso é bom por um lado porque me dá total liberdade de criação e de exploração das coisas mais estranhas que vêm à mente. Por outro lado, em certos momentos o desespero que surge se resume em uma frase: sobre que diabos eu estou escrevendo? E isso acontece muitas e muitas vezes durante o processo. Em algum momento, porém, inacreditavelmente, surge uma luz e tudo parece começar a se encaixar. A partir daí, consigo visualizar a abrangência do livro, sobre quais temas quero refletir. E, no caso do último livro, esses temas latino-americanos foram se consolidando com o passar do tempo como algo maior do que eu imaginava. E, com isso, surgiram ao mesmo tempo as dúvidas sobre a qualidade da obra e a cobrança de mim mesmo para solucionar os muitos problemas narrativos que apareciam, principalmente em livros com pano de fundo histórico, embora isso seja normal dentro de um processo criativo.

Por que debater esses acontecimentos históricos pela ficção?

Embora Soy Loco... tenha a característica de ter como pano de fundo acontecimentos reais e históricos, não tenho nenhuma pretensão de ser tão fiel à ordem dos fatos. O meu interesse primeiro é a psicologia dos personagens. Se a narrativa precisa de elementos reais para ser contada, eu os encontro e vou adequando-os à história. Por exemplo, o personagem Diego García recebe autorização do governo para ir às ilhas cobrir a Guerra das Malvinas como correspondente. Isso nunca aconteceu. Nenhum jornalista foi a essa guerra in loco. Quem espera um romance histórico detalhista e analítico vai sair bem decepcionado. Eu busco o detalhe da humanização por trás de uma história maior.

Ainda assim, você se aprofundou em uma pesquisa histórica para a escrita?

Fiz algumas leituras para contextualizar a história, principalmente para não falhar em sua cronologia, embora a fidelidade absoluta aos fatos não tenha se tornado uma preocupação tão grande. Também me utilizei de uma história contada por meu pai sobre prisioneiros sendo levados a uma ilha-prisão no sul do Chile durante a ditadura de Pinochet. Mas, também nesse caso, não fui fiel aos fatos. A graça da ficção é justamente essa, fantasiar a realidade.

E como evitar ser subjugado por essa realidade social pela qual os protagonistas passam (governos autoritários, guerras, injustiças, desigualdades)?

Não dá para evitar ser subjugado pela realidade de cada país. Dá, sim, para lutar, cada qual com suas armas, assim como os quatro personagens do livro.

Em comum, os personagens parecem ter a existência alterada por eventos históricos, ao mesmo tempo em que lutam para ganhar controle da própria vida. Como foi a construção dos protagonistas?

Os protagonistas das quatro histórias são carregados de sentimentos antagônicos por terem suas vidas transformadas de um momento para o outro. Diego García e a Guerra das Malvinas, Santiago Lazar e a ditadura chilena, Sergio Vilela e a redemocratização brasileira e, por fim, Marlon Muller e sua anarquia tecnológica globalizada. Admito que foi muito difícil desenvolvê-los, principalmente porque, mesmo com essas similaridades, são personagens muito diferentes um do outro, ainda que cada um deles busque incansavelmente sua identidade e seu lugar no mundo. Então, em algum momento eu me dei conta da encrenca: meu livro seria narrado em primeira pessoa por quatro personagens muito diferentes em tempos diferentes e em espaços diferentes, mas com um sentimento em comum. Nunca fiz terapia, mas imagino que seja algo parecido com o ato da escrita, com a diferença de que você dialoga consigo mesmo através dos personagens.

Apesar da intensa crise que permeia as histórias, a forma de narrar é tradicional, a não ser, talvez, pela ligação entre quatro textos a formar um romance. Como pensou a forma da obra?

Eu gosto de pensar que Soy Loco... é uma espécie de romance fragmentado. Uma história cronologicamente linear, dos anos 1960 até os dias atuais, contada em quatro partes por narradores diferentes em tempos e espaços distantes. Acho que essa forma foi nascendo à medida que eu descobri que queria contar uma grande história latino-americana, a minha história latino-americana e percebi que não conseguiria de um fôlego só, devido à geografia e à história particular de cada região. Então, mais na base do instinto do que da razão, fui criando várias vozes diferentes. A narração em primeira pessoa era fundamental para dar a carga emocional necessária aos personagens. No início eram oito histórias, mas elas foram criando uma unidade tão particular, que pareciam uma história só, em momentos diferentes. Acho que quando compreendi isso, a forma do livro se estabeleceu.

O presente contexto político-social brasileiro se infiltrou na escrita?

A meu ver, o contexto atual do Brasil se infiltra em todas as nossas ações de hoje. A terceira parte do livro fala justamente da época da redemocratização brasileira dos anos 1980 frente ao capitalismo de mercado e seus bastidores de chantagem e corrupção. Nada que tenha mudado tanto após 30 anos. Outro fator importante para o livro, e que tem o Brasil como um dos seus epicentros, é a rebeldia, o ódio, a incompreensão e o sentimento de destruição que estamos experimentando atualmente após a criação das tribunas das redes sociais. De certa forma, Soy Loco... é um livro político e sua última parte fala dessa revolta evidenciada e propagada através da tecnologia por meio de um movimento anárquico de superexposição para a derrubada de personalidades e corporações.

Seus pais saíram do Chile na época da ditadura, e você nasceu no Brasil. Como foi crescer distante do país que guarda sua história familiar? A escrita de Soy loco... esteve relacionada à busca por uma identidade?

Acredito que meu livro é, sim, uma busca por essa espécie de identidade latino-americana perdida. Fui o único brasileiro de uma família chilena em um país estrangeiro onde não tínhamos qualquer identificação. Meus irmãos e pais tinham a barreira do idioma, ao contrário de mim, mas eu nunca me senti verdadeiramente adequado aos lugares onde vivi. Parecia ser algo genético ou espiritual, sei lá. Nas vezes em que visitei o Chile, sentia algo diferente, as pessoas tinham a fisionomia mais parecida com a minha, me sentia mais em casa. Mas isso mudou com os anos, principalmente depois que tive filhos e criei, digamos, raízes definitivas. A escrita de Soy Loco... foi, sim, um tipo de redenção, mesmo que através da ficção.

A América Latina dialoga no seu livro, mas podemos falar numa identidade latinoamericana?

Acho difícil falar sobre uma identidade latino-americana atualmente porque temos agido de forma diferente nas últimas décadas e cada país tenta resolver seus problemas através da equação básica mundial: a economia. A mesma economia sufocada por interesses estrangeiros que estrangulou as populações e nos trouxe sem muitos problemas as terríveis ditaduras latino-americanas. Para mim, o que nos liga ainda é um passado intenso de exploração e violência, desde a colonização, e um sentimento de querer romper com isso, de superar as adversidades dia após dia, ano após ano. Temos essa marca para sempre. Somos sobreviventes. Talvez a nossa identidade seja essa.

O peso desse passado me pareceu marcante na obra. O que isso lhe diz sobre viver o presente?

O passado sempre faz marcas profundas no presente. E por isso é muito importante no livro, com digressões a cada instante da vida dos quatro personagens. Todos nós somos construídos com base no que passou e fizemos ou deixamos de fazer. Esse livro é um exemplo da minha própria experiência.