31 de março ou 1º de abril? Não interessa o dia, mas a oportunidade de reflexão: o que foi o golpe de 1964? Como reverbera nos dias de hoje? É possível traçar paralelos? Se sim, quais? Eis a utilidade das efemérides - nos levar a revisitar, com olhos do presente, fatos do passado. E projetar, com os anseios do presente, possibilidades de futuro.
Dado o complexo contexto político do país, convidamos Luís Felipe Miguel, professor e pesquisador da Universidade de Brasília, a compor uma lista com leituras que nos ajudem a entender os meandros da democracia no Brasil. Miguel é autor de obras como O nascimento da política moderna, e coautor de outras várias, a exemplo de Feminismo e política: uma introdução (com Flávia Biroli).
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O aniversário do golpe de 1964 é um bom momento para pensar os desafios que precisamos enfrentar para edificar uma sociedade democrática no Brasil – ainda mais agora, quando estamos recuando rapidamente em todo o percurso que havíamos conseguido percorrer desde a Constituição de 1988.
René Dreifuss – 1964: a conquista do Estado (Petrópolis: Vozes, 1981).
Longo e por vezes um tanto desordenado, o livro de Dreifuss ainda assim é básico para entender a ruptura de 1964. Mostra como os grupos dominantes se organizam para criar um clima de ameaça e, com isso, sabotar o apoio às instituições democráticas – qualquer semelhança com a derrubada de Dilma Rousseff não é mera coincidência. E mostra, sobretudo, como a democracia corre perigo cada vez que esses grupos passam a vê-la como comprometendo a permanência das desigualdades.
Maria Helena Moreira Alves – Estado e oposição no Brasil (1964-1984) (tradução de Clóvis Marques; Petrópolis: Vozes, 1987).
A narrativa sobre o fim da ditadura de 1964 costuma privilegiar as negociações entre grupos de elite e as tensões internas às forças armadas. Moreira Alves rompe com esse paradigma e, sem desprezar estes outros fatores, mostra também a importância que a retomada dos movimentos sociais e a ampliação inconformidade na população tiveram para a superação do regime autoritário. No momento em que é fundamental investir na resistência popular, trata-se de um livro a ser lido ou relido.
Regina Dalcastagnè – O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro (Brasília: Editora UnB, 1996).
A implantação de um regime ditatorial não significa apenas a ruptura com regras institucionais ou o exercício localizado da violência de Estado contra determinados grupos. É algo que contamina toda a vida social, chegando às relações cotidianas e aos sonhos e esperanças de mulheres e homens, de velhos, jovens e crianças. É a narrativa literária que, muitas vezes, nos dá acesso a essa dimensão. O livro de Dalcastagnè analisa nove romances, de escritores como José J. Veiga, Lygia Fagundes Telles, Érico Veríssimo ou Antônio Callado, que retratam a ditadura sob a perspectiva das vidas do povo brasileiro.
Francisco de Oliveira – Crítica da razão dualista e O ornitorrinco (São Paulo: Boitempo, 2003.)
O primeiro texto, lançado originalmente em 1972, é um clássico do pensamento social brasileiro. O segundo, do início do século XXI, tornou-se referência para pensar os obstáculos à transformação social no presente. Ambos discutem como, no Brasil, o moderno e o atrasado não apenas convivem, mas formam uma simbiose: o atraso é a condição para a existência do moderno, que não vive sem ele. Em particular, em O ornitorrinco, Oliveira mostra como a ascensão de dirigentes da classe trabalhadora à condição de gestores da acumulação capitalista, nos fundos de pensão ou em empresas estatais, representou mais uma associação de opostos que impede a resolução das contradições sociais.
André Singer – Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador (São Paulo: Companhia das Letras, 2013).
Na interpretação de Singer, o PT chegou ao governo com um programa de “reformismo fraco”, que buscava melhorar a vida e ampliar os horizontes dos mais pobres sem pôr em risco as vantagens dos privilegiados. Esse seria o preço a pagar para evitar uma reação que destruísse as conquistas alcançadas. No momento em que escrevia, o autor julgava que o projeto tinha sido bem-sucedido e mesmo estabelecera as políticas de imclusão social como um novo patamar para a disputa no Brasil. Pouco depois, o quadro mudou e este veredito se tornou inaceitável, o que mostra como as classes dominantes brasileiras são refratárias a qualquer redução da desigualdade. Ainda assim, Os sentidos do lulismo permanece leitura incontornável para entender os dilemas da esquerda brasileira.
Ivana Jinkings, Kim Doria e Murilo Cleto (orgs.) – Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil (São Paulo: Boitempo, 2016).
Coletânea de textos escritos no calor dos acontecimentos, publicada entre a destituição provisória da presidente Dilma Rousseff (em maio de 2016) e sua saída definitiva (três meses depois), este volume não tem a pretensão de apresentar uma análise definitiva da derrocada da democracia brasileira. Mas apresenta uma multiplicidade de aspectos, a partir de visões de mundo também bastante plurais entre si. Os capítulos tratam da mídia, da classe trabalhadora e dos sindicatos, das mobilizações da direita e de seus financiadores, da política externa, da misoginia e do racismo, dos fundamentalismos religiosos – enfim, dos vários aspectos do golpe e dos retrocessos que ele anunciava.
Nicos Poulantzas – O Estado, o poder, o socialismo (Rio de Janeiro: Graal, 1980).
O golpe de 2016 mostrou a complexidade do Estado brasileiro. O fato de que seu cume – a presidência da República – estava nas mãos de um grupo político não impediu que este grupo fosse derrubado por outros setores deste mesmo Estado. Subitamente, a vigência de todas as regras se tornou condicional. Aparatos e leis perderam sua fachada de imparcialidade e mostraram com clareza a quais interesses serviam. Poulantzas é reconhecidamente um autor árido, mas sua contribuição é importante para entendermos melhor os ambientes em que as disputas políticas ocorrem.