Escrevo esta resenha para saldar espécie de “débito” nosso com um dos melhores livros de poesia de 2015 e finalista do prêmio Oceanos 2016, Manual de flutuação para amadores (7 Letras), de Marcos Siscar. Na época, não demos a atenção merecida e aqui tentamos resolver a “questão” .A obra articula dois elementos conhecidos dos leitores de poesia: a ideia dessa arte como um vislumbre da vertigem que é estar no mundo, transmitida em versos de apuro formal simples e direto, sem melindres estéticos. Mas se destaca pelo teor metalinguístico, profundo e bem construído.
É justo que, no título, conste a palavra manual - obra que nos ensina a proceder em algo ou nos usos desse algo. Siscar cumpre essa proposta ao nos guiar pelos meandros da poesia; na verdade, da impossibilidade de alcançá-la em sua totalidade, mas que, ainda assim, nos joga de formas não usuais no mundo. Se podemos flutuar (algo não usual), há também versos que nos chamam ao chão, agindo como a gravidade. É entre essa possibilidade de pairar e a presença/necessidade do solo, uma dança de forças, que se encontra o eu poético e sua busca: meu desejo desta tarde é o da distância certa/ (...) não a ilusão panorâmica do que é visível/ mas a distância consentida ali onde se aceita/ a invenção da vida as insinuações da morte.
É um manual, também, porque nos dá algumas “lições”. Nele, o eu poético nos lembra que uma representação do mundo não é o mundo e, às vezes, sequer é mesmo uma representação legítima – para sê-lo, é preciso que as metáforas ganhem certa materialidade, como quando ao sentir as saúvas se é possível vislumbrá-las penetrando na própria carne.
É a partir do “outro” que a poesia surge. A cidade, o céu, as causas perdidas ou esquecidas, as “jornadas de junho de 2013” e afins, nada disso é poesia. Mas se confundem com ela. A certa altura, diz o eu poético: a cidade é um rizoma de epifanias subterrâneas. A mesma descrição poderia ser dada para a poesia, também. O que está em jogo são as formas nas quais realidade e disposição estética vão, lado a lado, culminar nos versos – uso a palavra “realidade” porque, mesmo não sendo teórico, entendo que a mimetizamos mesmo quando não escolhemos falar dela (o que não é o caso de Siscar).
Talvez seja arbitrário dizer que o trabalho de Siscar como artista flerta com sua atuação como professor universitário e pesquisador de poesia contemporânea. Mas creio ser possível pensar sua ação enquanto poeta e professor a partir da referência a Michel Deguy, o qual Siscar já traduziu e sobre quem já versou em ensaios. Certamente, o resultado e a estatura de ambos são diferentes, mas ambos os trabalhos são dotados de um “humanismo acolhedor” – expressão que o próprio Siscar já usou para se referir a Ana Martins Marques, com quem assinou o excelente Duas janelas (Luna Parque).
Mas Manual... não é um acolhimento tão amistoso como em Marques, talvez por se aventurar pelas dificuldades em se alcançar a poesia de forma mais evidente, por vezes com perguntas diretas e cortantes: poesia é o nome disso? é o que voltando a si se abandona?, ou ainda nos versos (…)A palavra/ sempre volta. Nesta língua o que retorna volta melhor sem/ literatura. Como é que se volta em poesia? Aliás quem é aquele/ que volta? Para onde quer que se volte já não se volta o mesmo.
Não sei se os parágrafos acima dão a dimensão exata do ótimo trabalho que o poeta fez no seu livro. Última tentativa: Manual... nos ajuda a entender a forte tendência autorreferencial da literatura contemporânea – que nos mostra que o interessante não é achar certezas, mas sim buscá-las.