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Leitura obrigatória nos vestibulares por aí afora, Machado de Assis costuma ser visitado pela primeira vez quando nossa capacidade crítica ainda não é tão desenvolvida. Muitos têm dificuldade para entender suas ironias. Fora o fato de que a leitura forçada de livros do autor - que, em geral, é reduzido a Memórias Póstumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro - tende a afastar os novos leitores, ao invés de aproximá-los. 

Pouco lido pelo grande público de seu país (ainda que seu nome seja conhecido e muito estudado nas universidades), o autor é, também, pouco explorado fora do país. Susan Sontag, em Questão de ênfase (Companhia das Letras, 2005), se diz espantada com o fato de que "um escritor de tamanha grandeza ainda não ocupe o lugar que merece. [...] Sem dúvida, Machado  seria mais conhecido se não fosse brasileiro e se não tivesse passado a vida no Rio de Janeiro - se, digamos, fosse italiano ou russo, ou mesmo português. Mas o embargo não reside apenas no fato de Machado não ter sido um escritor europeu. Mais notável que sua ausência no palco da literatura mundial é ter sido ele muito pouco conhecido e lido no resto da América Latina - como se ainda fosse difícil digerir o fato de que o maior romancista da América Latina tenha escrito em português e não em espanhol". Para ela, os dois grandes nomes que o continente produziu foram Borges e Machado e, ao que tudo indica, o segundo seria mais interessante que o primeiro.  

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Dada sua importância e complexidade, Machado é um autor que precisa ser revisitado com certa regularidade. E ter sua leitura expandida a outras obras. Motivados pela descoberta da existência obra Livro dos vinte anos - divulgada em jornais, mas jamais publicada (leia matéria sobre o assunto aqui) -, perguntamos a escritores pesquisadores quais as obras não canônicas que nos ajudam a entender a genialidade de Machado de Assis. Elas vêm com um breve comentário. 

Lembramos que a obra completa de Machado de Assis está disponível para download gratuito no site do Domínio Público

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Felipe Botelho Corrêa, pesquisador, organizou o livro Sátiras e outras subversões (Penguin-Companhia), com textos até então desconhecidos de Lima Barreto. É professor de Estudos Brasileiros, Portugueses e Lusoafricanos no King's College (Inglaterra).

“Além de tratar dos limites da razão e da loucura, O alienista (publicado originalmente em Papéis avulsos, em 1882) também tematiza o jogo político regido por arbitrariedades.

Na história, Simão Bacamarte, médico conceituado, decide enveredar pelo campo da psiquiatria e inicia um estudo científico sobre a loucura. Funda a Casa Verde, um hospício na vila de Itaguaí, e abastece-o de cobaias humanas. Passa a internar todas as pessoas da cidade que ele julgasse loucas. Nem a esposa escapou. No começo, a vila de Itaguaí aplaudiu a atuação de Bacamarte, mas os exageros ocasionaram um motim popular que é reprimido por uma intervenção militar. Os revoltosos são então trancafiados no hospício. Entretanto, nesse momento, a Casa Verde abriga quatro quintos da população de Itaguaí; todos internados como loucos.

Diante do contexto político e de tal situação inconcebível, quando somente uma pequena minoria da população está livre, Simão Bacamarte resolve inverter de forma repentina o critério de reclusão psiquiátrica que havia sido adotado. Um decreto oficial liberta os reclusos e autoriza a prisão da minoria: aqueles que antes eram considerados por Bacamarte como indivíduos dotados de perfeito funcionamento das faculdades mentais.

O giro que Machado de Assis dá à narrativa é um dos pontos altos desse conto que é uma sagaz sátira dos juízos sem fundamento”.

 

Hélio de Seixas Guimarães, pesquisador e professor livre-docente na Universidade de São Paulo e autor de Os leitores de Machado de Assis (Nankin/Edusp, 2004) e Machado de Assis, o escritor que nos lê (a ser lançado em outubro pela Editora da UNESP).

“A descoberta deste Livro dos vinte anos, mesmo que tenha ficado só como ideia ou projeto, certamente acrescenta novas facetas à figura já muito complexa de Machado de Assis. Estamos diante de um escritor que desde meados do século XIX não parou de oferecer novidades aos seus leitores. Basta ver as reações que a obra produziu entre os contemporâneos e a diversidade das leituras que seus textos registraram ao longo do tempo. Mesmo seus livros mais conhecidos têm mostrado uma capacidade espantosa de se renovar e de nos surpreender a cada leitura. Trabalho com Machado há muitos anos, e a cada vez que o leio vejo algo novo, que nunca tinha percebido que estava ali. Neste exato momento, estou relendo Americanas, seu livro de poemas de 1875, geralmente considerado um livro extemporâneo (Machado voltava à temática indianista num momento em que ela já era considerada ultrapassada). Estou impressionado com a convergência entre o que ele estava fazendo nos poemas e o que fazia e ainda faria na crítica, no conto e no romance, gênero em que acabara de estrear com Ressurreição, de 1872. Descobertas como estas feitas pelo professor Wilton Marques servem também para nos lembrar que um escritor como Machado está sempre nos confrontando com o inédito”.

 

Ronaldo Correia de Brito, escritor, médico e dramaturgo, é autor de obras como Galileia (romance), Retratos imorais (contos) e do Baile do Menino Deus (teatro). Venceu o Prêmio SP de Literatura em 2009 e foi finalista do prêmio Jabuti em 2011.

“Apesar dos especialistas na obra de Machado de Assis ressaltarem que o conto é o “gênero em que mais brilhou a mestria do mestre”, os leitores comuns, e talvez a própria crítica, não se ocupam em falar de livros como Papéis avulsos, Histórias sem data, Várias histórias, Páginas recolhidas ou Relíquias de casa velha. Nesses livros, se encontram as narrativas curtas que deram fama de gênio a Machado”.

 

Schneider Carpeggiani, editor do Suplemento Pernambuco e doutor em Teoria Literária (UFPE), organizou as coletâneas Documentais, Ficcionais e Ficcionais 2 (todos pela Cepe Editora).

"A melhor introdução que tive ao universo de Machado de Assis foi justamente a partir dos contos. Para ser mais preciso a edição 50 contos de Machado de Assis (Companhia das Letras), organizada por John Gledson. Aqui, em organismos curtos, uma afiada compreensão do humano e dos seus descaminhos, além de uma 3x4s da sociedade brasileira. Dos não-ditos de 'Missa do galo' passando pelo diagnóstico preciso de 'A chinela turca' - 'Muitas vezes o melhor drama está no espectador e não no palco' -, a leitura é vertiginosa. Num esquema literário em que os romances são sempre tomados como as maiores obras de um escritor, o Machado-contista é um Machado que merece ser urgentemente descoberto por iniciantes. E revisto por iniciados".