mariana compressed

Quando deixaram que eu pegasse livros na biblioteca da faculdade de filosofia, no Crato, minhas leituras mudaram radicalmente. Acho que o professor de História do curso científico intercedeu a meu favor. Antes, eu pedia emprestado os livros de um primo, na sua casa da cidade, onde ele guardava apenas autores brasileiros. Nas férias, bisbilhotava romances, contos, crônicas e poemas de autores estrangeiros, que o primo por motivo desconhecido esquecia em estantes altas e cheias de traça e cupim, na fazenda do pai, meu tio-avô.

Era costumeiro eu ficar três ou quatro meses de férias na propriedade da avó materna, vizinha de terras do tio-avô João Leandro Correia – mesmo nome do meu pai – e dedicar-me à pesquisa arqueológica de volumes menos danificados pelos insetos. Porém, mesmo nesses manuscritos faltavam folhas inteiras e em alguns deles os buracos atravessavam da primeira à última página. Por conta dessas leituras incompletas, cheias de hiatos e omissões, tornei-me escritor. Explico-me: Freud garante que as nossas motivações e escolhas de vida surgem para preencher faltas. Creio que escrevo para tapar os buracos da minha formação.

Um adolescente que frequentava a Faculdade de Filosofia (mesmo que apenas para pegar livros emprestados) ficava arrogante, se achando. Bem mais do que quando lia os xaroposos romances católicos da Biblioteca Diocesana. Eu passei a me exibir com Homero, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes debaixo do braço e do sol. Imaginem quando apareci com o Macbeth de Shakespeare, numa tradução de Manuel Bandeira.

Para falar a verdade eu era um fracasso no estudo de línguas estrangeiras, e nem me dava ao trabalho de pesquisar quem eram os tradutores do que eu lia. Hoje, sei que o Júlio César foi traduzido por um português – Antônio Siqueira Cabrita – (ou terá sido por Carlos Frederico Werneck de Lacerda?) e A megera domada provavelmente por Millôr Fernandes. Mas o Rei Lear, que se tornou a minha tragédia shakespeariana favorita, eu só li na década de 1970, graças ao poeta alagoano Ângelo Monteiro, com quem dividia apartamento na universidade.

Juro que não sei o nome do tradutor. As leituras seguintes, a partir da década de 1980, fiz na Obra Completa de William Shakespeare, versão de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. Costumo ler o Rei Lear uma ou duas vezes por ano e assisto às adaptações para teatro e cinema. A versão cinematográfica de Peter Brook, de 1971, com o ator Paul Scofield no papel de Lear, me impressionou mais do que a do russo Grigori Gozintsevi, também de 1971, ambas em preto e branco.

O roteiro adaptado do Rei Lear, dirigido para o cinema em 1985 pelo japonês Akira Kurosawa, me causou forte emoção, quando eu já imaginava não ter mais o que sentir ou descobrir sobre essa tragédia. Engano, o Carnaval de 2023 me reservou uma surpresa. Decidi não sair à rua, não brincar. E se relesse Lear? Há quase um mês tinha recebido um pacote da Editora 34 e não me dispunha a abri-lo. Quando apanhei o primeiro volume da versão de Cunha Medeiros e Oscar Mendes, senti-me desanimado. Se fosse pelo menos uma tradução de Bárbara Heliodora, Millôr Fernandes ou Manuel Bandeira...

Abri o pacote da 34.

Tratava-se de uma edição bilingue do Rei Lear, com tradução, posfácio e notas de Rodrigo Lacerda. Quanta sincronicidade! Diria Jung. Li quase tudo o que o que Rodrigo Lacerda escreveu – Vista do Rio, Outra vida, A república das abelhas, O mistério do leão rampante, O fazedor de velhos etc. –, e li as suas maravilhosas traduções de Faulkner e Alexandre Dumas. Acompanho o seu primoroso trabalho de editor e as muitas premiações que o tornaram um consagrado autor e tradutor brasileiro.

Nesta quinta tradução de Lear uma transcriação?, perguntaria Haroldo de Campos – as falas ganharam sonoridade natural, se desfizeram da impostação que transformava tragédias, dramas históricos e até mesmo comédias em diálogos difíceis de assimilar. As sandices do Bobo soam mais loucas e engraçadas, provocam distensão. Rodrigo recupera falas vulgares, palavras chulas, comuns ao teatro de Shakespeare, escrito para um público diverso, não apenas de nobres e pessoas cultas e requintadas. O tradutor sempre quis que os textos teatrais fossem lidos com a fluência de romances e contos e tivessem o mesmo prestígio da prosa.

Com um número suficiente de notas de rodapé, que não distraem o leitor da emoção dramática, as informações mais detalhadas ficam para o posfácio. Tudo é bem-cuidado nesse livro primoroso, que o torna um dos mais importantes lançamentos do ano de 2022.

Lendo o Rei Lear traduzido por Rodrigo Lacerda, senti mais verdadeiro o que escreveu F. E. Haliday:

Embora Shakespeare seja tão fugidio, porque é tão multiforme, sempre mudando de um personagem para outro, seu espírito permeia as peças, e nós as lemos não só pela poesia que contém ou pelos personagens que nelas encontramos, mas pelo homem que ele foi. É isso, mais do que qualquer outra coisa, que as torna tão consoladoras. Nós as lemos por sua amável sabedoria, sua avassaladora e meridiana iluminação da vida, sua alegria e seu espírito, sua sanidade essencial: porque ele era o homem idealmente normal, cujas abrangentes faculdades estavam sempre perfeitamente afinadas e sintonizadas. Lemos Shakespeare porque ele é o homem que todos nós gostaríamos de ter como amigo.”