O escritor Rosário Fusco
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No último post da ocupação virtual Modernismo rede social é como se chegássemos ao fim de uma volta decisiva numa espécie de corrida de revezamento, em que o bastão da liderança do modernismo é, enfim, passado ao próximo corredor. O modernismo se fez movimento irradiando-se em várias direções e sentidos, do Sul ao Norte, entre litoral e sertão, além da fronteira nacional. O chão de ferro de Minas Gerais, porém, se mostraria particularmente fecundo às sementes modernistas que Mário de Andrade vinha germinando em diferentes lugares. No entre-lugar das Minas se abriram as veredas tanto da nacionalização quanto da cosmopolitização do modernismo e seu legado. A força gravitacional de Mário em Minas alcançaria por cartas o círculo intelectual da revista Verde, de Cataguases, mediada por um Drummond àquela altura já inteiramente “curado” do mal de Nabuco e convertido em agente socializador do movimento. Entre rasuras e lapsos na (re)escritura das cartas, Mário seria prescrito como um phármakon na farmácia de Drummond, que no futuro faria publicar, num ato de inconfidência, as cartas que continham a “lição do amigo”, tornando-a de alguma forma perene e contemporânea a outras e futuras gerações. Afinal, bem compreendida a lição, a juventude seria a portadora social da potência da palavra modernista.
Se, por um lado, podemos ver no “gigantismo epistolar” de Mário um gesto de generosidade, por outro, ele não pode ser separado de uma reivindicação de comprometimento. Dádivas, já nos ensinou Marcel Mauss, são simultaneamente interessadas e desinteressadas, e no seu cerne está a possibilidade de reciprocidade. Exemplar a esse respeito é a correspondência com o “pouco trabalhador” e irregular Pedro Nava, que também fazia parte do chamado grupo do Estrela. As cartas de Mário muitas vezes demoravam meses para ser respondidas e outras tantas vinham curtas, incompletas. Se a displicência com a correspondência ainda era por ele relevada, o que frustrava suas altas expectativas era a falta de compromisso de Nava com o cultivo de seus talentos artísticos modernos, inicialmente na poesia e depois no desenho, e o risco de que aquele potencial se perdesse no meio do caminho.
O sucesso do modernismo não dependeria da simpatia de diletantes ou de espasmos de gênios, incapazes de “aguentar o tranco”, mas de um treinamento e uma atitude disciplinada, quase como se um exercício de uma vocação. O legado de renovação cultural do modernismo como um movimento articulado e relativamente descentrado que não se esgota no presente, mas enlaça as gerações num processo, sempre em aberto e inacabado, dependeria, portanto, de um trabalho permanente da matéria brasileira: “trabalhe e trabalhe sempre”, “você carece de continuar sempre”, interpelaria Mário o destinatário coletivo encarnado no descuidado jovem Pedro Nava, que assimilaria tardiamente a lição do antigo mentor ao elaborar à beira-mar suas Memórias, também arquivos da criação e dos afetos do modernismo.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE A ROSÁRIO FUSCO
V. deve estar achando grosseiro o silêncio que separa o seu cartão da minha resposta. Porém agora não achará mais. Porque o meu silêncio foi uma resultante das mil e umas diárias aporrinhações da vida que levo, de fazedor do "Diário de Minas", não um sinal de pouco caso ou de falta de camaradagem. [...] Ora V. faz parte de minhas preocupações sentimentais há muito tempo. Antes de me mandar aquele cartão e aqueles versos. Desde o dia em que li uma resposta sua ao "Cataguazes" do Ascanio. Li, gostei e tomei nota de seu nome. [...] Falo de igual para igual, porque não posso ser muito mais velho do que v., e afinal a sua geração é a geração desse seu criado obrigado. E v. tem o direito de me fazer um apelo idêntico - a mim e aos meus companheiros de turma - que estamos ameaçando fazer coisas sérias há uns bons quatro anos, e até agora nickles. Eu fico meio triste quando penso que a preocupação de ganhar a vida vai me desviando sutilmente de meus projetos literários, e que o meu povo está endireitando pelo mesmo caminho. Não sei o que será de nós. Mas Deus é grande, não é? Vamos todos trabalhar, Rosário Fusco.
Não sei se vale a pena dar uma opinião particularizada sobre os 4 poemas que me enviou, depois que já dei uma opinião larga e sincera sobre v. O resto é detalhe. Em v. o que interessa antes e acima de tudo é a sua capacidade mocidade capaz de produzir. V. está numa fase de procura intensa que é cheia de inquietações, eu sei. Vou lhe dar uma receita que é infalível nessas e noutras [apertices]: use Mario de Andrade. É o melhor remédio do mundo. E não falha nunca.
ROSÁRIO FUSCO A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Gostei da sua sinceridade americana. Sim senhor! Sinceridade americana-brasileira-moderna-mineira (êta nome comprido!) porque esse negócio de europeu não vai comigo. E nem com você.
Vou usar a sua receita. Eu usava (porque agora não usarei mais) um xarope complicado composto de:
Um pouco de simbolismo do Manuel Bandeira.
Um pouco do entusiasmo do Ronald de (última fase)
Um pouco do ritmo-barulho-colorido do Guilherme.
[ilegível]
Use à vontade
E v. adivinhou muito direitinho o remédio que eu precisava. [...] Simples e prático. Vou beber aquilo devagarzinho e esperar o resultado que não falha nunca. Conforme v. me garantiu.
[...]
O Mario fez muito boas referências de você comigo. E falou que eu pegasse com você de fato. Que você é ele em ponto pequeno. Pois estou aqui bem grudado, pior do que carrapato estrela.
MÁRIO DE ANDRADE A PEDRO NAVA
A gente se mete num movimento de renovação como o nosso, imagina logo e infantilmente que é só escrever uns versinhos e umas critiquinhas, pronto, tá tudo renovado, em vez a realidade chega e a gente põe reparo que não se renova assim à-toa que a base ruim é de pedra dura porque é o costume dos homens e sobretudo repara que tem um trabalho imenso em que terá de botar a vida inteira si quiser mesmo fazer alguminha coisa. E vai, se cansa de antemão e não tem coragem para começar de verdade o que terá de durar a vida toda. Essa é que é a causa verdadeira do desânimo de vocês.
[...]
O que falta para você e em geral para vocês (menos pelo que eu estou vendo no Diário de Minas, pro João Alphonsus, vida bonita) é entusiasmo permanente. […] Falta para vocês organizarem a vida da sensibilidade criadora numa corrente contínua que pode e terá naturalmente seus momentos de excesso de força (os momentos grandes) porém não cessa nunca. Que nem eu, este diabo de bobão que está na frente de você. É uma pena que vocês não sejam assim […]. Que você é poeta outras coisas provam também. Agora o que carece é alimentar a sacra chama, excusez! Porém por causa do muito que estamos matutando e este diabo de temperamento crítico, excessivamentissimamente crítico que a nossa época nos deu ponha reparo no poder de falhados que estão aparecendo no modernismo. De vez em quando uma mijadinha de arte e depois passamos anos e às vezes a vida inteira sem mijar mais. Uma porrada de rimbaudzinhos infelizes e ridículos afinal, si não fosse tão doloroso. Eu não queria que você fosse desses...
MÁRIO DE ANDRADE A ROSÁRIO FUSCO
[...] O presente não é nada pelo que você pode fazer no futuro e tenho esperança que fará. Tudo depende de trabalhar agora, e tomar com seriedade essa brincadeira luminosa da arte. O modernismo brasileiro estaria muito além da sua já enorme vitória, não fosse o poder de frouxos que se meteram nele e não aguentaram o tranco. Porquê que não aguentaram? É fácil de perceber. Principiar é trabalho leviano que qualquer ombro de piá carrega porém em seguida a gente percebe que não pode ficar nessa promessa de menino-prodígio, que tem mesmo de ir além e sobretudo ir mais profundo e que-dê estudo, que-dê base, que-dê treino e folego pra isso? Não se tem e não se tem coragem pra começar. Então se faz o que a maioria fez, cai na pândega, não escreve mais, desdenha e caçoa da poesia e da arte, banca o superior, enfim fazem um dilúvio de coisas que não conseguem esconder a realidade: são frouxos, não aguentaram o tranco. Se ausculte bem primeiro, veja sem ilusões si você é mesmo fatalmente artista. Si é, continue. Si não é, vá ser carroceiro, chofer, corrupiê, ladrão, mas seja vitalmente uma realidade, isso é que importa.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE A PEDRO NAVA
Tive uma grande alegria com o seu Território de Epidauro. Nunca me conformei com o fato de você continuar sem o nome na capa de um livro. Uma geração é vaidosa de si mesmo, e sentir você tão bem dotado e ao mesmo tempo tão esquivo era o mesmo que sentir fraudado aquele nosso grupo da década de 20. Você, muito manhosamente, se refugiava num bissextismo cômodo, mas essa solução não me satisfazia, nem de resto à comunidade de seus amigos. Por isso mesmo, este Território, tão inteligente, tão rico de perspectivas para o leigo, a quem você desvenda aspectos pitorescos, poéticos e humanos da medicina – é uma espécie de pagamento de dívida. O livro saiu digno de você, cheio de ilustração sem pedantismo, e vazado numa forma literária gostosíssima. Agora você fica intimado a nos dar outros.
ROSÁRIO FUSCO A MÁRIO DE ANDRADE
Não sei se já te falei a respeito da receita que o Carlos Drummond me mandou. Qué vê?
“Use Mário de Andrade
é o milhor remédio e não falta nunca!”
Gostei da receita. Embora ela me pareça um pouco irônica. Me explico: esse use aí, a meu ver, parece que quer dizer: copie, decalque etc.
[...]
Te agradeço – Mário. Vá me ensinando sempre. Seja meu mestre, quase pai espiritual. Na literatura a gente aprende a vida. E quem aprende a vida assim como V. – sabe viver.
REFERÊNCIAS
ACERVO Rosário Fusco (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). Carta de Drummond a Fusco, 12 de setembro de 1927. Correspondência passiva de Rosário Fusco com Carlos Drummond de Andrade.
ACERVO Carlos Drummond de Andrade (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). Carta de Rosário Fusco a Carlos Drummond de Andrade, 12 de outubro de 1927. Correspondência passiva de Carlos Drummond de Andrade com Rosário Fusco.
ANDRADE, Mário de. Carta a Pedro Nava – São Paulo, 24 de abril de 1926. In: Correspondente contumaz: Cartas a Pedro Nava (1925-1944). Ed. Preparada por Fernando da Rocha Peres. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 79-80.
MENEZES, Ana Lúcia Guimarães Richa Lourega de. Carta de Rosário Fusco a Mário de Andrade, 14 de novembro de 1927; carta de Mário de Andrade a Rosário Fusco, 8 de novembro de 1927. In: Amizade “carteadeira”: O diálogo epistolar de Mário de Andrade com o Grupo Verde de Cataguases. Tese de Doutorado (Literatura Brasileira). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013.
VASCONCELLOS, Eliane; SANTOS, Matildes Demetrio dos (org.). Carta de Carlos Drummond de Andrade a Pedro Nava – Rio de Janeiro, 6 de setembro de 1947. In: Descendo a rua da Bahia: A correspondência de Mário de Andrade e Pedro Nava. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017, p. 73.