Henriqueta Lisboa Reprodução da Internet

 

 

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O período vivido no Rio de Janeiro, entre 1938 e 1941, foi dos mais difíceis para Mário de Andrade, que havia deixado São Paulo extremamente abatido e magoado por seu afastamento involuntário do Departamento de Cultura e pelo que entendia ter sido o fracasso de sua gestão à frente dele. O autoexílio propiciou também a meditação prolongada e a realização de balanços sobre sua vida pessoal e o papel intelectual que vinha desempenhando, como aparece na avaliação bastante crítica e melancólica que acabou por fazer do modernismo e da contribuição de sua geração intelectual na conferência O movimento modernista proferida na Casa do Estudante do Brasil em 1942. Aqueles anos fortaleceram, acima de tudo, suas convicções sobre a responsabilidade e o compromisso social de artistas e intelectuais. Mas o Rio de Janeiro, afinal de contas, também propiciou a convivência de Mário de Andrade com jovens artistas e intelectuais procedentes de diferentes regiões do país para seu centro cosmopolita. Os debates quentes regados a chopes gelados na Taberna da Glória não foram esquecidos por seus alunos da Universidade do Distrito Federal e outros jovens, como os rapazes da Revista Acadêmica, entre os quais estava Moacir Werneck de Castro, jornalista engajado que era primo de Carlos Lacerda, com quem cursou a então Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e militou politicamente na juventude. No xadrez modernista, a juventude era a rainha.

A dimensão afetiva e do reexame profundo da consciência criadora se aprofunda nas cartas entre Mário e a poeta mineira Henriqueta Lisboa (foto). Os poetas se conhecem em 1939, iniciando uma troca de mensagens que se estende até 1945, ano da morte do escritor paulista. O movimento modernista já não se encontrava mais em sua fase festiva e de rupturas, inaugurada com a Semana de 1922. O artista era impelido a se posicionar politicamente diante das intensas transformações do presente e também dos problemas de rota identificados no passado, o que exigia uma guinada de perspectiva crítica sobre os sentidos do modernismo e da cultura brasileira.

Henriqueta Lisboa já havia publicado três livros de poemas antes do contato com o consagrado líder modernista, Fogo fátuo (1925), Enternecimento (1929) e Velário (1936), que a destacavam como uma das vozes promissoras da lírica moderna, mas sem se alinhar a nenhuma vertente estética. Sua poética universalizante e sua dedicação a temas como o amor, a religiosidade e a morte a afastavam das tendências de representação das questões nacionais, mas Mário reconhece que ela “é tão nacional, como todos somos nacionais, e basta”. Eneida Maria de Souza, em seu ensaio introdutório à edição da correspondência, num gesto crítico, mas também de quem participa do papo, sublinha a importância daquela amizade para o “aprimoramento estético da autora”: “Henriqueta pôde sentir que as sensatas opiniões de Mário confirmavam o privilégio de se ter um leitor especial de poesia”.

O privilégio de se ter um leitor especial, como temos ao ler as cartas de Mário e Henriqueta, através do viés teórico e (auto)biográfico de Eneida, é também privilégio da amizade. É como se nos tornássemos não apenas testemunhas da comunhão dessas vozes, mas também, de algum modo, participantes do diálogo ao reconstituir os liames da criação e da crítica nas páginas dessas cartas e nos envolvermos afetivamente com o comum (no sentido de communis, ou seja, partilha por meio da troca) que delas emana. A correspondência, sabemos, mesmo na forma das atuais redes sociais, indica a distância entre os missivistas, mas também ressalta o esforço de aproximação, de estar junto ao outro. A literatura, assim como o amor e a amizade, não acontece sem alguma dose de empenho.



MÁRIO DE ANDRADE A MOACIR WERNECK DE CASTRO

Mohacir (com h aspirado)

O h vai em homenagem aos seus 29 anos, puxa como você está velho! E envelhecido, talvez um bocado caducando. Pelo menos quando diz e garante na sua carta que não tem “sido mesquinho nem sectário no que tem escrito sobre o assunto em relação à literatura”. Protesto em nome do sectarismo, que é uma coisa ilustríssima. Mesquinho concordo e aplaudo. Mas por favor não misture o mesquinho e o sectário. Cuidado, mano! Eu acho justo o que vocês, velhos de 29 anos, têm na mão é a luta “sectária”, pois não. Nem é mais que o espírito humano, profundamente moral e “elevado” de seita, de grupo, de ideologia, do que você quiser, que dá a visão, o tom, o julgamento ativo e agente em crítica. O mal é o safado tabu que “eles” criam com as palavras e pra elas, e que a gente não se lembrando de “revisar” aceita e fica vítima de. Hoje, falar um pouco mais alto ou sobre pátria, bandeira, barrete frígio, etc virou “demagogia”. Hoje atacar em nome dum ideal que é o que nos dá a visão da vida e porque nos sacrificamos, virou “sectarismo”. E assim vão os acomodatícios, os bem-pensantes, os “universitários” (outra palavra que jamais significou os filhos-da-puta que hoje se escondem nela, e significou sempre luta), os conformistas criando tabus e a gente ficando vítima deles. E porque não quer fazer demagogia enfraquece o calor das paixões, e porque não quer ser sectário bambeia a flecha que vai matar e cai no chão. Vocês moços, vocês que se fixaram numa ideologia, eu acho que devem fazer crítica sectária e não serem vítimas do sentido-tabu que “eles” deram à palavra. Sem mesquinhez mas sectária. De resto é sectária e é feliz que seja assim.

Da mesma forma, é desagradável mas é verdade: eu não acho nada feio, aprovo, compreendo, embora não possa aplaudir, está claro, que um Tristão ou Schmidt combata contra, procurando impedir que os contra escrevam nos jornais. Está certo, Mohacir! Essa até é uma atitude “moral”. Porque se eu me convenço que um escritor está prejudicando, corroendo etc a coletividade com seus escritos, é meu dever impedir isso! Não é mesquinhez agir assim, e se eu pudesse, fazia o mesmo!

Aliás, nesse sentido, de uns bons tempos pra cá eu resolvi aceitar sem restrições a “dignidade” do escritor. Ponhamos: a dignidade em si do escritor em si. De resto isso é apenas uma ilação de outro princípio tomado desde os princípios de minhas lutas literárias que foi nunca processar os que me atacassem por ter escrito, escritores. Está claro que eu podia e pude botar muita gente na cadeia com os insultos que me atiraram. Mas o princípio era o mesmo: se eu sou contra, fundamentalmente e irredutivelmente contra as restrições, quaisquer, à liberdade do pensamento, eu não posso me utilizar dessas restrições legais e coibir a liberdade de pensamento de ninguém. [...]


HENRIQUETA LISBOA A MÁRIO DE ANDRADE

Querido Mário,

Só há poucos dias recebi A Lira Paulistana, que já li três vezes com intensa emoção. Não queria falar precipitadamente de assunto tão importante mas, sinto que tive mais um grande encontro com você, com a sua ternura humana, com a sua divinatória clarividência, com todas as razões da sua poesia, que desta vez veio simples e clara como as cousas que estão ao nosso alcance mas que não valorizamos enquanto não se realiza o milagre artístico. Desta vez um milagre sem ruído, à semelhança do ovo de Colombo. Um milagre, que em lugar de acender, apaga as luzes mais fortes para que se possa ver a lamparina do deserdado. O popular sobreposto ao culto, eis aí. O que mais chama a atenção nesta sua poesia, em que a terra brasileira, não apenas a paulistana, está presente até na respiração dos versos, é o equilíbrio que nem sempre dominou na anterior. Não estou preferindo este equilíbrio ao deslumbrante desequilíbrio de outros poemas; verifico somente que a força de convicção é maior, em exata correspondência com as suas preocupações de ordem social. A sátira veio forte e rija – poderei dizer ruminada? – das profundezas do ser. Só convence aquele que tem a verdade em si mesmo. Só a arte realizada é verdadeiramente arte de combate. Como você é grande!

[...] Fiquei impressionada de ver a que ponto você se preocupa com esses rapazes. Santo Deus! Se eu pudesse ajudá-lo em alguma cousa! A dificuldade maior é que eles não terão confiança em mim, nem sequer me conhecem. Imaginam que realizo arte com egoísmo, despreocupada dos mil problemas da vida de hoje – econômicos, sociais, espirituais, quando, em verdade, o problema que me preocupa é o mais lancinante de todos – o da consciência, não apenas o de uma consciência. Mas eles são ainda muito moços. O que me espanta é o excesso, o desordenado da leitura a que se entregam. [...] Se eles pudessem ter um desenvolvimento mais harmonioso, campo mais vasto, mais variado, para os exercícios da cultura, a beleza sob aspectos múltiplos!

[...] Calculo o tumulto desse coração grande nessa hora de amargura e insegurança para o Brasil. Como o Brasil está em você, Mário!

Senti isso uma vez mais lendo O Movimento Modernista, que recebi com orgulho. É um documento de excepcional valor. [...] Mas acho-o muito pessimista nessa obra, não posso aceitar a sua desilusão do modernismo, de cujas conquistas se beneficiam todos aqueles que escrevem hoje – vivos.


MÁRIO DE ANDRADE A HENRIQUETA LISBOA

[...] Você se admira, Henriqueta minha, das minhas preocupações até dramáticas, até difíceis de aguentar que eu tenho com esses rapazes daí. Eu precisava me abrir sobre isso, e com uma pessoa como você, que me aguenta assim como eu sou, pelo que me quer bem. Já não falo não do próprio sofrimento pessoal que me causa tanto drama alheio, tantos valores em perigo, tantas mocidades esperdiçadas, tanta promessa, tanto crime do mundo, tanta malícia e tanta perversidade. Isso é comigo, posso sofrer escondido, às vezes custa a aguentar, dá ímpetos de mandar tudo naquela parte, mas enfim vou me aguentando sempre. E seria o cúmulo da pretensão, eu imaginar que só comigo isso dá, só eu que sofro com essas coisas. Muitos sofrem. O doloroso, Henriqueta, é a mesquinhez dos outros, dos que não se amolam com essas coisas e esses dramas dos artistas ou dos moços. Ou que para os sofrer, precisam público. Só sofrem em público, nos seus artigos, nos seus discursos. E a mesquinhez tece a trama de caçoadas, de pequeninas perversidades, de apreciações depreciativas em torno de mim. [...] Mas é incrível como eu tenho aguentando toda uma vida, não infâmias assim, graças a Deus!, mas a perversidade pequenininha, dos que se incomodam com os meus “discípulos”, com os meus “filhotes”, como era costume falarem nos tempos mais descabelados do Modernismo. Ou como até os de maior responsabilidade, sem necessidade nenhuma, em artigos, falando nas minhas preocupações professorais, a minha paciência e a dedicação com os novos. Parece uma infantilidade minha não ser “superior” a essas coisas, como se diz. Mas primeiro eu não consigo ser superior, ser indiferente a coisíssima nenhuma nesta vida, tudo me fere, me ofende ou me agrada igualmente. Depois, como é que eu posso bancar o superior diante de baixezas miúdas de que a gente sai, não morto em luta, não ferido e atacado, mas sujado! Isso é gente que suja e que sabe sujar. E há uma coisa que enfim se chama mesmo higiene mental, higiene moral, a que a noção de sujeira, e sujeira existe, é mais angustiosa, dolorosa e insuportável que a ferida leal do lutador ferido. Ferida ainda pode ser medalha, sujeira nunca. Eu não posso lhe dizer tudo, Henriqueta, iria ferir suas delicadezas mais íntimas, mas eu sei que você acredita: essa preocupação, essa dedicação, esse entusiasmo pelos que me procuram (jamais, jamais eu procurei ninguém) eu tenho mais que me analisado, pensado, perscrutado, dissecado bem o que me manda, feito as hipóteses mais abomináveis, mais repulsivas, mais baixas. Não é possível. Antes de mais nada é uma fatalidade. Uma carta não respondida me queima, me deixa impossível de viver, me persegue. Algumas não respondo, me exercito, ou condeno por inúteis. Me queimam, me perseguem tanto hoje como as deixadas sem resposta, vinte anos atrás. Afinal de contas uma pessoa não pratica um modo de viver trinta anos, sem que isso encarne nele como um órgão. Não há dúvida: eu sei, que é um desejo de perfeição humana, uma aspiração à amizade mais pura e desinteressada que me leva a tudo isso. É uma fatalidade. Idiota como todas as fatalidades. Mas que se converteu num exercício constante de superação, de aperfeiçoamento pessoal e de desimpedida fraternidade humana.


REFERÊNCIAS

CASTRO, Moacir Werneck. Carta de Mário de Andrade – São Paulo, 11 de março de 1944. In: Mário de Andrade: Exílio no Rio. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 205-206.

SOUZA, Eneida Maria de (org.). Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade – Belo Horizonte, 23 de outubro de 1944; carta de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa – São Paulo, 25 de outubro de 1944. In: Correspondência de Mário de Andrade e Henriqueta Lisboa. São Paulo: Peirópolis: Edusp, 2010, p. 300-301, 304-305.