Ribeiro Couto reprodução 

 

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Nas palavras de Manuel Bandeira, Ribeiro Couto (na imagem acima) era um “farejador de novidades”. Se o poeta de Carnaval (1919) “era modernizante sem saber”, foi por influência de Couto, que lhe revelou “os italianos e os franceses mais novos, Cendrars e outros”. Assim como Bandeira, Ribeiro Couto também se recusou a participar da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, embora reconhecesse a importância do evento e estivesse sintonizado com as principais tendências da arte moderna. Logo após o rompimento de Graça Aranha com a Academia Brasileira de Letras, Couto publicou artigo em O País, de 29 de junho de 1924, que defendia a construção de um novo presente, mas sem destruir o passado, da mesma forma que Manuel Bandeira ressaltara em cartas a Mário de Andrade e em seu Itinerário de Pasárgada. Já a relação com o poeta de Pauliceia desvairada era de profundas dissensões, que nunca se solucionaram.

Como se rolássemos a linha do tempo dessa rede social, em uma relação algorítmica, temos, em seguida, carta de Graciliano Ramos ao amigo Joaquim Pinto da Mota Lima Filho, com quem, na juventude, partiu para o Rio de Janeiro, a fim de trabalhar como jornalista. Graciliano precisou retornar, em 1915, depois da morte de familiares vitimados pela peste. Só voltaria à então capital federal praticamente duas décadas depois, no porão do navio Manaus, prisioneiro do regime pré-estadonovista de Getúlio Vargas. O autor de Angústia se declarou um “antimodernista” em mais de uma ocasião, demonstrando rejeição não apenas aos postulados estéticos do movimento, achando tudo uma “tapeação desonesta”, mas também, de certo modo, à centralização do eixo regional no Sudeste, como observa ao jornalista Homero Senna: “Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão”. Apesar disso, acompanhava tudo à distância, por meio de jornais do Rio e de livros encomendados da Livraria Garnier. O poema citado na carta ao amigo é Iara, de Mário de Andrade, publicado no periódico Terra roxa e outras terras, em 1926, depois reunido no livro Clã do Jabuti (1927), sob o título Poema.

Descendo mais a barra de rolagem, abrimos a eloquente, porque dissonante, carta do “legionário” Carlos Drummond de Andrade a Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Ataíde, um dos principais críticos responsáveis pela consagração do modernismo. Uma das conquistas permanentes do modernismo foi justamente a de transformar a cultura brasileira num campo aberto de luta, no qual natural e ironicamente os próprios lugar e sentido sociais do movimento passariam a ser questionados.

Sobre a imagem acima: Retrato de Rui Ribeiro Couto, 1920, de Vicente do Rego Monteiro; Óleo sobre tela, c.s.e.; 35,00 cm x 48,50 cm; Coleção Gilberto Chateaubriand - MAM RJ.

 

RIBEIRO COUTO A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

[...] Eu não embarquei na canoa. Não quis ir. Repugnam-me certas coisas em matéria de vida. Não tenho a vocação do ator de mambembe, que ainda daqui para acolá em exibições. E o Graça arrastou os meus amigos a uma certa semana de arte, que foi de um profundo ridículo. Ainda se ela fosse “de arte”, vá lá. Mas, foi uma coisa heterogênea, com briguinhas, vaidadezinhas, aporrinhaçõeszinhas.

Para fazer o movimento não era necessário aquilo. Um movimento faz-se com revistas e livros. Às vezes também com conferências. Porém, sempre a conferência depois da revista e do livro.

A semana de São Paulo resultou nisto: apregoou-se num teatro uma série de teorias mais ou menos passadistas que o público, por sugestão, vaiou. O Menotti del Picchia, tipo do passadista, também deitou falação. E o Mário, com aquela bruta ingenuidade, aparteou o próprio Graça Aranha, que ficou queimado com a falta de solidariedade… e o Renato Almeida fez uma conferência muito interessante, o Ronald creio que também fez – porém cada um puxando para um lado. A esse tempo, valha a verdade, só o Mário de Andrade poderia dizer para onde caminhávamos. Os outros haviam quebrado as cadeias mas ainda estavam espantados da libertação. Não sabiam o que era aquilo, ou onde ia dar aquilo.

O fundador do movimento moderno no Brasil é o Mário de Andrade. Ele é que abriu caminho, a sopapos e a gritos. Todos os outros (mesmo o Manuel, que ensaiara, dez anos atrás, uma liberdade absoluta), todos os outros são libertos. Temos, pois, Mário de Andrade: o libertário; e os outros, fulano, beltrano, cicrano etc.: os libertados.

No meio de tudo isso o Graça Aranha é um retórico a gesticular no próprio vazio interior.

O Graça não entende nada disso. Aquela coisa do objetivismo dinâmico é caso para Juliano Moreira tomar providências… Ele está tão impressionado com as ideias dele, que considera passadista todos os que não fazem o objetivismo dinâmico… Quer dizer: como ninguém faz isso (que deve ser coisa feia) todos nós somos passadistas.

Só há uma verdade no movimento modernista: um grupo de sujeitos inteligentes, cada qual a seu modo, está rompendo com a tradição. Rompeu-a.

Nada mais.

Querer, porém, subordinar esse movimento a regras é cair no passadismo. Como se houvesse regras para destruir uma tradição! (ou um hábito). [...]


GRACILIANO RAMOS A J. PINTO DA MOTA LIMA FILHO

[...] Li hoje uma poesia que tem este começo:


Neste rio tem uma iara...
De primeiro o velho que tinha visto a iara
Contava que ela era feiosa, muito!

Isto é bom, com certeza, porque há quem ache bom. Naturalmente os meus netos aí descobrirão belezas que eu não percebo. Questão de hábito. Se me não engano, é opinião de M. Bergeret. Acreditas que no Brasil possa aparecer alguma coisa nova? Em vista da amostra, eu dispensava o resto.

Afinal, quando o sujeito não tem inteligência para compreender essas inovações, o mais prudente será, talvez, seguir o velho preceito do alcorão de Lilliput: “Cada qual quebrará os seus ovos pela parte que achar mais cômoda.” Como toda a gente até hoje tem quebrado os ovos pelo lado grosso, não sei que vantagem há em experimentar quebrá-los pelo lado fino.

Outra coisa: vê se me arranjas aí uma gramática e um dicionário de língua paulista, que não entendo, infelizmente. E manda-me dizer se é absolutamente indispensável escrever sem vírgulas. Faço-te esta consulta porque em Palmeira, compreendes, não encontro quem me possa orientar. Um sertanejo daqui foi o ano passado a Bauru, ao café. De volta, confessou-me que o que lá havia mais extraordinário era se falarem mais de vinte línguas, difíceis, principalmente a “língua paulista e a língua japão”. Parece que são duas línguas realmente difíceis. [...]


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE A ALCEU AMOROSO LIMA

Convicções políticas, filosóficas, estéticas, não as tenho. Nunca senti entusiasmo algum pelo modernismo. Hoje sou um legionário porque, embora não tenha a mínima ilusão sobre a origem, natureza e finalidade desse movimento, eu o considero mais interessante e sobretudo mais honesto do que a organização pessimista do Estado. Sou, portanto, um legionário sem ver.

 

REFERÊNCIAS

BORTOLOTI, Marcelo (org.). Carta de Ribeiro Couto a Carlos Drummond de Andrade, Pouso Alto, 29 de novembro de 1925. In: Carlos Drummond de Andrade e Ribeiro Couto: correspondência. São Paulo: Editora Unesp: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2019, p. 34-35.

SALLA, Thiago Mio; LEBENSZTAYN (org.). Carta de Graciliano Ramos a J. Pinto, Palmeira, 18 de agosto de 1926. In: O antimodernista: Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record, 2022. [No prelo].

RODRIGUES, Leandro Garcia (org.). Carta de Drummond e Alceu, Belo Horizonte, 1º de junho de 1931. In: Drummond & Alceu: correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Alceu Amoroso Lima. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 105.