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Em 1922, Anita Malfatti, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral formavam o chamado “Grupo dos cinco”, que poucos anos depois se dividiria em lados opostos (e outros lados), com o movimento Verde-Amarelo (depois rebatizado Grupo da Anta), a Antropofagia e Mário de Andrade, cada um em seu quadrado.
Naquela época, Menotti era o único escritor já consagrado, graças a seu fenômeno editorial Juca Mulato, publicado em 1917. Sob o pseudônimo Hélios, era também colunista do Correio Paulistano, onde faria a cobertura da Semana de Arte Moderna, autointitulando-se o “Gedeão” do movimento. Em carta de Mário de Andrade por ele publicada em 23 de fevereiro de 1922, acompanhamos ainda no calor do acontecimento a repercussão imediata da vitoriosa ocupação modernista do Teatro Municipal. O evento bombástico catapultou os modernistas à “celebridade”, mas não sem cobrar, de alguns deles, um alto preço, como foi o caso de Mário de Andrade. As vaias do público, no entanto, ecoaram neles por muito tempo, reforçando seu compromisso mútuo e impulsionando-as a seguir em frente, mesmo que por caminhos separados e em direções contrárias.
Sobre a imagem que acompanha esta postagem: O Grupo dos Cinco (1922), de Anita Malfatti. Tinta de caneta e lápis de cor sobre papel, c.i.d.; 36,50 cm x 26,50 cm; Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros - USP (São Paulo, SP)
MÁRIO A MENOTTI
Que tal? Conseguimos enfim o que desejávamos: celebridade. Soube que o x.z. estava um pouco aterrorizado com os insultos que temos recebido. Consola-o tu. Realmente, amigo, outro meio não havia de conseguirmos a celebridade. Era só assim: aproveitando a cólera dos araras. Somos todos pseudofuturistas, uns casos teratológicos. Somos burríssimos. Idiotas. Ignorantíssimos. Compreendes que com todas essas qualidades só havia um meio de alcançar celebridade: lançar uma arte verdadeiramente incompreensível, fabricar o carnaval da “Semana de Arte Moderna” e… deixar que os araras falassem.
Caíram como araras. Gritaram. Insultaram-nos. Vaiaram-nos. Mas o público já está acostumado com descomposturas: não leva a sério. O que fica é o nome e um sentimento de simpatia que não se apagam mais da memória do leitor.
Estamos célebres! Enfim! Nossos livros serão lidíssimos! Insultadíssimos, celebérrimos. Teremos nossos nomes eternizados nos jornais e na História da Arte Brasileira.
Agora calemo-nos, amigo Hélios. Não há mais necessidade de “escores”. Estamos célebres, amados e desterrados.
E tudo isso por quê? Porque os araras caíram na armadilha. Insultaram-nos. Somos bestas, doentes, idiotas, ignaros!
Tudo isso é verdade, amicíssimo. Mas como os jornais disseram e o público não acredita, toda a gente imagina que somos perfeitíssimos de corpo e de alma, inteligentes, honestos e eruditos.
Que araras, amigo Hélios, que araras!
MÁRIO A HENRIQUETA
Anita Malfatti, nos tempos do Modernismo, talvez tenha feito uns vinte retratos meus. Eu, com a Semana de Arte Moderna, perdera todos os alunos, tinha dias inteiros vazios sem que fazer. Anita também. Eu ia pro ateliê dela e como não tínhamos o que fazer ela fazia o meu retrato, muitas vezes tornando a me pintar sobre uma tela em que eu já estava e ela reputava inferior. De toda essa retrataria, três ficaram: o primeiro, feito mesmo com intenção de retrato, creio aliás que anterior a 1922, muito rúim como pintura, mas curioso como época e como... como eu. Sou bem eu e somos bem nós daqueles tempos, gente em delírio, lançada através de todas as maluquices divinas e minha magreza espigada um pouco com ar messiânico de quem jejuou quarenta dias e quarenta noites. [...]
Embora muito combatidos e insultados ainda, o grupo modernista aumentara, as adesões de todo o Brasil chegavam numerosas, três salões dos mais ilustres nos recebiam com carinho e aplauso semanalmente, o de dona Olívia Penteado, o de Paulo Prado e o de Tarsila e era festa muita, alegria muita. Se passara pra sempre o tempo de exaltação em que, assustados, batidos de todas as partes e apenas três ou quatro, nós, pela simples e primeira exigência de nos sabermos vivos, nós nos achávamos invariavelmente uns gênios e cada obra que fazíamos uma obra-prima imortal. Ainda não havia sombra de dissolução no grupo, mas era, sim, era exatamente a desilusão da vitória. Já nos examinávamos com maior franqueza e verdade, já nos entrecriticávamos, já chegávamos à frígida calma de não gostar. A mim isso me afetara muito, além do excesso dos estudos em que me refazia do tempo perdido nas revoltas de ginasiano.
Devorava uma Lógica numa noite, pra na noite seguinte devorar depressa uma Geografia, acossado pela angústia ambiciosa de devorar umas dez obras de Gourmont recebidas de manhã pelo correio e me censurando inquieto por ter de, por uns dez dias, abandonar uma vasta Psicologia nova ou qualquer Física ainda ignorada de Ostwald. Física não, Química, desculpe. Faz tanto que esse tempo passou que até ia me esquecendo da ciência de Ostwald… um reflexo desse cozido de leituras você encontrará fácil no excesso de citações da Escrava que não é Isaura, com que, de caso pensado, sendo “ignorante” o mais frequente qualificativo dos nossos adversários, quis mostrar como era fácil no Brasil adquirir fama de culto. E foi facílimo. De enjoar. Principiaram falando que eu era culto, que eu era culto, que eu era culto – o que tem prejudicado bem minhas liberdades, palavra. O mais irônico é que eu tenho sido apenas honesto e adquiri fama de cultura justo no momento em que pratiquei um ato consciente de desonestidade! [...]
BANDEIRA A MÁRIO
[...] desde aquela noite em que nos avistamos em casa do Ronald, tive fé em ti como cabeça e como coração. Tu és já uma esplêndida realidade para mim. Mas que direi das esperanças que me inspiras? Porque és esta coisa extraordinária no Brasil: um poeta com grande força intuitiva, com sólida cultura e com alta moralidade. Tens aquela profundidade de sentimento que faltou a todos os nossos poetas, salvo talvez Cruz e Sousa. É entre nós o único temperamento integralmente e harmoniosamente moderno. Todos nós outros somos mais ou menos adesistas; assimilamos o pensamento e a técnica moderna, e artistas que sobretudo somos, demos à nossa arte mais essa maneira de ser. Tu, não. O verso livre moderno é o teu único instrumento de expressão como poeta. Terias certamente falhado, se tivesses nascido na geração de Bilac. Creio firmemente que estás vivendo a época da tua alma. Eis porque deposito tanta fé em ti. [...]
HENRIQUETA A MÁRIO
[...] Há um outro trabalho que você precisa fazer: o estudo da Semana de Arte Moderna – vinte anos depois. O surto de maior importância da nossa literatura, e do qual foi você o esteio, não pode não deve ser estudado senão por você, particularmente nas suas consequências. [...]
REFERÊNCIAS
Carta de Mário de Andrade a Menotti Del Picchia (pseudônimo Hélios), Correio Paulistano, 23 de fevereiro de 1922.
MORAES, Marcos Antonio (org.). Correspondência de Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp/IEB, 2001, p. 94.
SOUZA, Eneida Maria de (org.). Correspondência de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Edusp/IEB/Peirópolis, 2010, p.150-154; p. 161.