mario de andrade



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O primeiro post da ocupação Modernismo rede social trata do escândalo – como uma “treta” dos dias atuais na internet – em torno do rompimento de Graça Aranha com a Academia Brasileira de Letras, instituição de que fora um dos fundadores e que representava, para os modernistas, a guardiã oficial do “passadismo” a ser combatido. O diplomata Graça Aranha foi o responsável por apresentar, aos jovens modernistas paulistas, Paulo Prado, “fautor verdadeiro da Semana”, segundo Mário de Andrade. Graça Aranha empresta ao evento seu prestígio de medalhão, articula a participação de figuras cariocas de peso, como Ronald de Carvalho e Heitor Villa-Lobos, e profere a conferência de abertura, A emoção estética na arte moderna, baseada nas ideias de seu livro A estética da vida, publicado em 1921. Em 19 de junho de 1924, faz outra conferência, desta vez a polêmica O Espírito Moderno na ABL, na qual decreta, entre aplausos e vaias, renunciado à imortalidade: “se a Academia não se renova, morra a Academia”. Se tal episódio representa o triunfo simbólico do modernismo sobre a tradição, ele é também um marco da contestação pública da liderança do movimento modernista que Graça Aranha arrogava para si, a qual culminará na ruptura – que hoje talvez chamássemos de “cancelamento” – por parte de Mário de Andrade.

 

CARTA DE GRAÇA ARANHA À ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

Excelentíssimo senhor presidente da Academia Brasileira,

Desde que na sua última sessão a Academia rejeitou o projeto que apresentei no intuito de modernizar a sua atividade, dou por extinta a minha função acadêmica. Poderia afastar-me sem explicações, como outros já fizeram por motivos pessoais, num gesto de desdém por esta instituição. A atitude, porém, que tomo é de ordem geral e deve ser explicada. Convidado para membro fundador da Academia, escrevi a Lúcio de Mendonça recusando a minha participação por julgar a criação desse instituto prejudicial à nossa jovem literatura, cuja vibração e desordem fecunda seriam juguladas pelo espírito acadêmico. Machado de Assis e Joaquim Nabuco insistiram de tal forma pela minha colaboração, que, num sorriso cético, me resignei à Academia, louvando a incoerência, que me fazia companheiro de tão grandes espíritos, infrangíveis espelhos de educação e beleza moral para os acadêmicos. Longos anos deixei-me ficar nesse suave convívio, um pouco desinteressado dos trabalhos da Academia. Ultimamente resolvi intervir no movimento literário brasileiro. A Academia é uma contradição do espírito moderno, que agita e transforma todo o Brasil. Perante a opinião pública, que a deve policiar, entendi estimular a Academia a orientar-se por esse espírito novo. Em seguida às palavras que lhe dirigi, apresentei o projeto de reforma dos seus trabalhos com o propósito de nacionalizar-lhe e modernizar-lhe a ação. O projeto foi rejeitado. A Academia quer persistir na sua posição eclética e antiquada, nefasta à literatura brasileira. Recusa-se a tornar-se um organismo útil e ativo, um fator do moderno sentimento nacional, seu representativo, seu guia. A Academia Brasileira morreu para mim, como também não existe para o pensamento e para a vida atual do Brasil.

Se fui incoerente aí entrando e permanecendo, separo-me da Academia pela coerência.

Queira, senhor presidente, receber as expressões da alta consideração do seu admirador e amigo

Graça Aranha

 

CARTA PÚBLICA DE MÁRIO DE ANDRADE A GRAÇA ARANHA

Graça Aranha, sei que se queixa dos modernistas de São Paulo terem se afastado de você. Como esses lamentos não trazem endereço nem assinatura e não sei que ouvidos os escutam, esta vai aberta. Está claro que não tenho procuração de ninguém. [...] Vamos a ver pois algumas das razões que provocaram o desprestígio de você em quase todo meio modernista.

Em primeiro lugar está o erro de vaidade com que você confundiu a função de orientador com a de tiranete e chefe político de comarca. Por onde se prova que você é um brasileiro… [...] Eu fui dos que mais custaram a se convencer de que você, mal vindo da Europa, se meteu no Modernismo brasileiro por interesse pessoal e não pelo desejo de ser útil. 

[...] Porém você falha como orientador porque em vez daquele que imagináramos no começo, sujeito de ideias largas, observando a época e condescendendo com o Modernismo tal como ela e ele são, espécie de Gourmont do Brasil, você pela preocupação excessiva de si mesmo, pela estreiteza crítica a que essa preocupação o levou, está hoje sobrando em nosso despeito apenas como dogmático irritante, passador de pitos inda por cima indiscretos, e um modernista adaptado ao Modernismo apenas pelo desejo de chefiar alguma coisa. 

[...] Falhando consideravelmente no próprio destino por se acreditar uma coisa quando é outra, desequilíbrio que há de amargar você me parece que irremediavelmente, inda falha como figura orientadora e representativa do Modernismo brasileiro. Não é representativo duma orientação tão variada e dispersa (além da impossibilidade natural dum homem só representar um complexo que reúne até coisas opostas) porque nem mesmo o brasileirismo, nosso mais aparente traço comum, você representa. Porque não sintetiza ou analisa ou procura discriminar os caracteres específicos do brasileiro e do Brasil, em vez cria e prega no seu idealismo incurável um brasileiro com Errata no rabo, talvez mais bonito não discuto, mais ideal porém, integrado no Cosmos e vivendo em perpétua Alegria. Quer impor a uma raça existente uma psicologia nova como se fosse possível a um homem criar ou apenas modificar com ideias a essência da psicologia dum povo mesmo inda em formação ver o da gente. 

[...] E é por causa desse narcisismo enrabichado que o Espírito Moderno com que assustou as parerús acadêmicas em vez de ser, como devia pelo título e pela função, uma demonstração sintética das tendências mais gerais do espírito moderno que não pertence a você porém ao mundo, é trabalho dogmático, pregação de teorias pessoais que só tiveram eco fraco na obra de dois outros. 

[...] E essa imposição de personalidade, essa indiscrição arrogante de si mesmo que faz você ficar pesando sobre a gente, acabou toda a função orientadora que poderia ter. Quis ser o marechal da mocidade brasileira porém ficou no coronel (por onde se prova que você é bem brasileiro…): nos deu a moeda papel que tinha, notoriedade e nome, não nos enriqueceu com a moeda ouro duma inteligência clarividente e dum saber de verdade. 

[...] Você não soube compreender qual a essência do caráter votivo da mocidade. [...] À mocidade que, depois de buscada por você, principiou se aproximando e se entregando, você não soube ceder ante a impaciência que ela tem de viver sozinha e de inventar por si. [...] E não soube dar tempo ao tempo, deixar que errassem para aprenderem por si que é de deveras o único jeito de aprender. E quando transigiu apreciando ou louvando obras e gestos alheios não soube transigir aceitando outras tendências e outras maneiras de ser também fecundas e diferentes das suas porém tudo desvirtuava, tudo torcia para que se encaixassem dentro das teorias de você. 

[...] O Modernismo tem dado muitos blefes como todas as escolas e orientações. Ninguém pode culpar a uma destas os tubarões que vão de arrasto na esteira do navio. Esta imagem não se dirige pro seu caso porém você se tornou o maior blefe do Modernismo em vez de pro público, o foi para nós mesmos, espécie de bala saída pela culatra e atingindo o atirador em vez da caça. Produziu uma arranhadurinha: desilusão.

[...] O Modernismo não carece de prestígios tradicionais para viver, já se impôs e se alimenta das roças que plantou. É tempo de você, abandonando o sonho de marechalatos impossíveis, trabalhar naquela obra-de-arte de que certos passos relumeantes dos seus últimos livros nos deixaram a saudade antecipada.


Mário de Andrade

 

REFERÊNCIAS

Carta de Graça Aranha à Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, 18 de outubro de 1924. In: MONTELLO, Josué (org.). O Modernismo na Academia: testemunhos e documentos.  Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1994, pp. 135-136.

Carta de Mário de Andrade a Graça Aranha. A Manhã, Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1926.