A ciência como ela é JaquelineGoes1 abril.22 credito.MatheusMota

 

Em agosto de 2020, quando a pandemia de covid-19 ainda exigia de cientistas ao redor do mundo noites insones numa corrida para buscar uma vacina e entender de que maneira o vírus se comportava e se espalhava, o Pernambuco, em parceria com o Instituto Serrapilheira, lançou uma série de contos inéditos, escritos por 12 escritoras e escritores brasileiros. A série foi batizada de Botão Vermelho, o índice de "urgência" implícito ao nome. A ideia era fabular com inspiração em pesquisas científicas apoiadas pelo Serrapilheira. A motivação vinha simultaneamente do desejo de divulgar a fortuna da ciência produzida no Brasil em ambientes da imaginação, mas sobretudo de dar relevo a um trabalho que se tornou alvo de perseguições negacionistas. Em outubro de 2021, a ciência brasileira sofre um baque de proporções trágicas. Mais de 90% do orçamento para a ciência no país foi cortado, há um projeto de destruição em curso. Novamente, é preciso falar de ciência. E desta vez, mais especificamente falar de quem a produz.

Esta série em parceria com o Serrapilheira chama-se A ciência como ela é, e reúne crônicas e ensaios literários inspirados em cientistas de todo o Brasil que, de dentro de seus cotidianos e pequenos grandes feitos, nos tocam nas dimensões mais essenciais e afetivas de nosso relacionamento com o mundo.

A ciência como ela é tem edição da pesquisadora e curadora Carol Almeida e imagens do ilustrador e animador Matheus Mota. Clique aqui e leia os demais textos publicados.

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Esta é uma crônica biográfica, eu sou escritora e fui convidada a escrever sobre a vida da cientista Jaqueline Goes. Jaqueline Goes foi a biomédica brasileira, baiana, que coordenou a equipe responsável pelo sequenciamento do genoma do vírus SARS-CoV-2, em apenas 48 horas após a confirmação do primeiro caso de covid-19 no Brasil. E a partir desse feito “viralizou” em várias mídias como exemplo de mulher negra na ciência. São tantos importantes símbolos que a jovem pós-doutora, Jaqueline Goes, representa no Brasil e no mundo, visto que, infelizmente, nem a pandemia, nem o racismo, nem o machismo são ocorrências apenas da sociedade brasileira, que a empresa de brinquedos Barbie homenageou a cientista com uma boneca. Sim, Jaqueline Goes é refinada cientista e, também, boneca Barbie, e isso diz da urgência de termos mais e mais mulheres negras em postos de destaque na ciência no mundo. Mas, voltemos à parte em que sou escritora e estou escrevendo em São Salvador, cidade onde Jaqueline Goes nasceu, em 1989, sobre a ciência como ela é... Na verdade, estou em São Paulo; ontem à noite, vi a lua por um telescópio pela primeira vez, e hoje acordei, como de costume, nas primeiras horas do dia; é véspera de Natal, é 2021. Hoje à noite, volto para Salvador, mas, nessa manhãzinha paulista, aguardo ao lado de um telescópio – peça de estudo e de trabalho do meu primo – e das imagens da lua para falar por chamada de vídeo com a renomada cientista que está num pós-doc na Inglaterra. A família sabe que eu terei uma importante reunião de trabalho nesse amanhecer. Estou sozinha no quarto com toda essa tecnologia e ciência, atenta para ouvir, anotar. Jaqueline Goes entra e temos gravadas quase duas horas de conversa. Minhas anotações principais marcam: a mãe, a amiga, a vendedora de livros, a professora, a cientista Ester. O sonho, as nuvens, o voo, o avião, o coletivo soteropolitano, o metrô londrino, a criança menina profeta, a tatuagem he set me free. Resumo as anotações em três palavras: sequenciamento de liberdade. E começo a história.

Para a Biomedicina, sequenciar é organizar algo, é determinar a ordem de nucleotídeos ou de aminoácidos numa proteína. Para uma mulher, numa sociedade estruturalmente machista e racista, a liberdade é manter-se viva e produtiva. Para uma escritora, escrever é produzir liberdade. Para uma biomédica, sequenciar é produzir vida. Essas orações trazem como argumentos ações de equilíbrio em ambiente de desordem. Uma pandemia é um momento de desequilíbrio da vida, no qual o ordenar dá o tom da sobrevivência. Uma pessoa profissional da Biomedicina, numa pandemia, tem um papel importantíssimo. A leitura genética que ela poderá fazer de um vírus será o ponto de começo dos estudos que originarão, por exemplo, testes diagnósticos precisos para identificar se um humano está ou não com um vírus em seu organismo. E essa precisão é determinante na ação medicamentosa que pode salvar aquela pessoa. Uma mulher negra biomédica no Brasil, e no mundo, tem um papel tão importante quanto, pois os campos de representatividade que ela poderá alcançar podem ser pontos de provocação para debates e discussões sobre machismo e racismo na ciência. E essa abertura de questões poderá tocar e inspirar outras mulheres a seguir caminhos de liberdade.

Nessa pandemia do vírus SARS-CoV-2, ou da doença conhecida como covid-19, a expressão “testei positivo” tem sido referência de uso amplo para comunicar a presença do vírus no organismo. O positivo do saber é o acionar o botão de alerta para iniciar o tratamento e o isolamento. O saber uma coisa é sempre mais simplificador que o não saber. Ter um diagnóstico é vital para que aquela vida possa seguir em equilíbrio. Saber que uma porta se estreita e, por momentos, até se fecha, é buscar caminhos de liberdade para fuga. Saber que uma sociedade é, estruturalmente, machista e racista é, para uma mulher em qualquer uma de suas diferentes dissidências (classe, raça, gênero e orientação sexual), compreensão fundante para o seu seguir e caminhar com quiçá mais saúde.

A ciência como ela é... e a vida como ela é... se aproximam. Em verdade, nada nunca está apartado. O sequenciamento de liberdade é, exatamente, ordenar as conexões produtoras de ambientes de vida. Uma mulher na vida de outra mulher pode ser referência produtora de ambiente saudável, inspiração. Inspirar é tocar no anima, no sensível de nosso ser. É despertar sonhos e impulsionar desejos. E precisamos compreender que, num contexto machista e racista, em que mulheres negras são cotidianamente abafadas e desestimuladas, a representatividade positiva é revolucionária. Não à toa, viralizam nas redes sociais vídeos de crianças em frente à TV emocionadas ao se reconhecerem em corpos de mulheres negras apresentando telejornais e, ou mesmo, recentemente, em personagens de filmes da Disney. Se a representatividade impulsiona a vida de uma mulher adulta, imagina a movimentação (do sutil) que pode causar na vida de uma criança? Perguntei à Jaqueline Goes qual o sonho que ela lembrava de ter sonhado na infância e ela contou que se lembrava de um em que ela estava voando, olhando as nuvens da janela da aeronave. A mãe de Jaqueline, dona Edna Silva, é técnica em enfermagem e pedagoga. Funcionária federal concursada do Hospital das Clínicas da UFBA. A filha, muitas vezes, acompanhou a mãe ao hospital. Jaqueline cresceu desejando ser médica. Algumas vezes, em companhia do pai, foi ao hospital, de ônibus, em período de Carnaval, para buscarem a mãe. Eles cruzavam a folia, pois o trabalho de dona Edna ficava próximo a um dos circuitos da festa. Na mesma medida em que aquela cidade a atraía, expulsava-a. Aquela movimentação toda em sua cidade, para uma criança-adolescente que ia ao encontro da mãe no trabalho, tornava-se mais um resgate do que um divertido passeio por entre foliões.

Ao conversar com Jaqueline Goes para escrever esta crônica, anotei num papel: “uma cientista deve ser uma pessoa muito atenta e observadora” e pensei: “uma cientista e uma escritora estão próximas”, mas responderei: “uma cientista necessita da precisão de uma informação” e a uma escritora basta o cochicho. E assim a Biomedicina chegou à vida de Jaqueline Goes. Foi numa quarta-feira, ela estava vestindo azul, estava no ônibus, sentido centro da capital baiana. Jaqueline, então com 16 anos, iria descer para estudar no cursinho pré-vestibular. Estava em companhia de sua amiga, Larissa, que vestia verde-claro. Ambas faziam aquele trecho todos os dias. E, por alguns dias, naquele ônibus BTU, vermelho e azul, LAPA/Pituba, linha 0805, entrava uma vendedora de livros. E Jaqueline, entre a conversa com a amiga e as conversas do ônibus, ouviu como um cochicho a fala da vendedora: “remédio para diabetes”. Larissa parou a conversa e disse: “Você ouviu ela dizer que naquele livro tem a cura para a diabetes?”. Jaqueline, que já era referência entre suas amizades como a pessoa de fala e de justiça, aquela que compreende tudo na justa medida da letra por letra, disse: “Olha nosso ponto!”. Era o ponto e as duas amigas desceram. Ao descer, Jaqueline repetiu o cochicho e ficou surpresa: “Você ouviu ela dizer isso?”. “Sim”, a amiga confirmou, “ela está vendendo um livro de produtos naturais e disse que uma folha daquelas cura a diabetes”. Jaqueline guardou aquela informação e esperou até que um dia voltasse a encontrar a vendedora de livros, na linha 0805, do BTU vermelho e azul.

 

A ciência como ela é JaquelineGoes2 abril.22 credito.MatheusMota

 

Foi numa quarta-feira. Ela estava, novamente, vestindo azul, e Helena, a vendedora de livros, estava vestindo vermelho, cor do seu santo. Helena entrou no ônibus de fones, estava ouvindo A vida é desafio, dos Racionais MC’s, Jaqueline ainda cantarolava he set me free, o hino que havia conhecido na igreja na manhã do último sábado. Ambas, mulheres de fé, deslocavam-se naquele ônibus em diferentes projetos de liberdade. Helena tirou os fones e começou a contar a história que sempre contava naquele trabalho de venda dos livros. Eram livros de receitas naturais, verduras, legumes e frutas. Helena mesclava um pouco de lamentos existenciais, somados a dados estatísticos sobre consumismo e meio ambiente e acrescentava informações sobre saúde e bem-estar. E, em algum momento, a frase: “aqui vocês podem encontrar a cura da diabetes”. Jaqueline confirmou a observação que sua amiga havia feito na viagem anterior. “Sim! Ela está prometendo algo incorreto”. Pensou e tocou no braço da vendedora de livros e falou: “Olha, seu trabalho é interessante, mas você fala uma coisa incorreta, não existe cura para a diabetes como você diz”. Helena se surpreendeu. Não entendeu o que aquela interrupção comunicava. Não que ela não entendesse de interrupções. Sobre isso ela sabia bem. Mas aquelas palavras tinham um cuidado, uma precisão, tinham alguma coisa diferente. Jaqueline seguiu: “tá tudo bem, você só precisa mudar seu discurso”. Helena observava que ela vestia azul, que a pessoa sentada ao seu lado vestia verde. Helena lembrou da última conversa com sua mãe de santo e da orientação: “Ogum e Oxóssi querem te dar um recado”. Tudo isso se passou na mente de Helena e ela voltou àquele BTU, linha 0805, e pensou que precisava vender aqueles livros e começou uma discussão calorosa para salvar aquelas vendas. O ponto passou. “Passamos do ponto”, Jaqueline observou. Pediram o ponto. As duas amigas desceram. Três pontos depois Helena, também, desceu. Não vendeu nada naquela viagem. Mas, na viagem seguinte, em que não falou sobre a cura da diabetes, vendeu três livros. Recorde de vendas para uma viagem. Ela voltou a pensar na conversa com a mãe de santo. Aquilo era sorte. Aquela conversa toda com aquela menina, que vestia azul. Aquele trabalho da venda de livros era organizado por Salomão, ogã do terreiro que Helena frequentava. Naquele dia, na reunião de prestação de contas das vendas, Helena contou a Salomão sobre a observação da menina de azul, na linha 0805. Salomão era estudante de Biomedicina, na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, ele era funcionário do setor de bibliotecas da instituição e havia conseguido uma bolsa e complementava a renda mensal com a organização daquele negócio da venda de livros nos coletivos. Salomão sabia que algumas pessoas usavam a palavra cura nas narrativas de propaganda, mas, reafirmou à Helena que a menina estava certa, o melhor era mudar aquele discurso. E mais, disse Salomão: “diz a essa jovem que ela deve fazer Biomedicina”. Helena foi para casa feliz, pois, naquele dia havia vendido três livros em uma viagem e resultou que aquela conversa animosa podia ter sido mesmo mensagem dos seus guias. Era sorte. Helena colocou os fones e seguiu ladeira. Os dias passaram e no encontro seguinte, uma quinta-feira, ela avistou a menina no coletivo. “Ei, foi você que conversou comigo sobre a diabetes, eu já vou abordar de um modo diferente, falei com o meu supervisor. Olha, o doutor Salomão falou para você fazer Biomedicina, ele é biomédico”. Jaqueline ouviu os agradecimentos de Helena e se alegrou com os caminhos de precisão de sua fala. Ela não sabia  que aquela vendedora de livros se chamava Helena, não sabia que Salomão ainda era estudante, não sabia que eles eram do Candomblé. Mas Jaqueline sabia ouvir. E vinha, desde muito jovem, a partir da orientação religiosa de sua mãe, dona Edna, ministra fiel da Igreja Batista, aprendendo a posicionar um discurso público de fala. Em casa, Jaqueline pesquisou tudo sobre a Biomedicina e confirmou: “Sim! Serei biomédica. Aquele encontro com a vendedora de livros e aquele recado daquele biomédico foram sorte”. E veio o vestibular, a aprovação, o curso, a universidade, professoras inspiradoras, a iniciação científica, a graduação com louvor, o mestrado, caminhos e curvas, o lecionar, o doutorado, muita pesquisa, caminhos e curvas, o grupo de pesquisa com Ester Sabino. O sequenciamento do genoma do vírus SARS-CoV-2, em menos de 48 horas após a confirmação do primeiro caso de covid-19 no Brasil. A primeira entrevista após esse feito. “Ester me ligou avisando que já havia divulgado a notícia e que eu daria a entrevista”.

Estou em casa, é janeiro, estou em Salvador, ouvindo a biomédica, Jaqueline Goes, e me emociono muitíssimo. Uma avalanche de imagens e enredos sobre a História do Brasil, a história da biomédica, a história de tantas mulheres desse nosso país e da Bahia inundam meus olhos. Acompanho a voz dela. Jaqueline se arruma para esse momento tão importante para a ciência no mundo e para sua carreira. A entrevista será online, estamos em plena pandemia. A biomédica organiza as falas, ponderando a necessidade de ser precisa nas informações, pois a entrevista será curta. Jaqueline fala e fala muito bem. Dona Edna ouve a filha com orgulho. Ester Sabino ouve a companheira de trabalho com orgulho. Todas as mulheres ouvem Jaqueline com orgulho. Estamos ali, com ela. Não estamos sozinhas. Como ela também nunca está. Helena não sabia que o nome daquela menina era Jaqueline. Helena ouve a biomédica Jaqueline Goes com orgulho. É sobre liberdade essa história. A liberdade de seguir um desejo. A educação, o ensino e a pesquisa precisam ser espaços onde pessoas possam sonhar e optar por escolhas de querência. Um caminho de uma cientista na estrutura acadêmica não é simples, é de reviravoltas e lutas. Pode ser de adoecimento e abandono. Que bom que Jaqueline Goes seguiu. Em dezembro, após a conversa de quase duas horas com ela, desliguei a tecnologia e fui tomar café com meus tios, fomos comemorar que eu havia conseguido realizar aquela importante reunião de trabalho. Aqui, meses depois, lembro com carinho desses encontros. Penso que Jaqueline Goes pode até já ter voltado para o Brasil. Pode agora estar em Salvador tomando um café, no Santo Antônio, onde fica o seu restaurante preferido. Ou pode estar em São Paulo, em algum laboratório seguindo suas pesquisas. Ou, quiçá, ainda esteja em Londres. Recordo, ainda, uma história que Jaqueline contou em nossa conversa de dezembro, ela me disse que no dia anterior esteve observando uma criança, uma menina, que conversava sobre Cristo, com o irmão, no metrô. Eu penso no frio de Londres e em como o ouvir e observar pode nos aquecer. Penso que a pós-doutora Jaqueline Goes é uma mulher atenta a seu tempo. Jaqueline me disse que se identificou com aquela menina e que o encontro com a fé em que ela acredita é o que prega lugares de liberdade, independentemente de instituições. “Por isso tatuei a frase, he set me free, pois quero me (a)firmar num caminho de liberdade”. Diz.

Estamos, no Brasil, vivendo mais uma onda da pandemia da covid-19, agora, com a variante ômicron. Neste momento em que escrevo, mulheres vendem livros em coletivos, alguma menina-criança inglesa e ou imigrante conversa em algum metrô londrino, jovens mulheres estudam para acessar cursos universitários. Neste momento, alguma criança em qualquer parte do mundo brinca com uma boneca da biomédica brasileira, baiana, mulher negra, Jaqueline Goes. Neste momento, fecho estas palavras agradecendo sua leitura e audição e repetindo que representatividade importa, sim, na ciência, na literatura. E, principalmente, na infância.