Em agosto de 2020, quando a pandemia de covid-19 ainda exigia de cientistas ao redor do mundo noites insones numa corrida para buscar uma vacina e entender de que maneira o vírus se comportava e se espalhava, o Pernambuco, em parceria com o Instituto Serrapilheira, lançou uma série de contos inéditos, escritos por 12 escritoras e escritores brasileiros. A série foi batizada de Botão Vermelho, o índice de "urgência" implícito ao nome. A ideia era fabular com inspiração em pesquisas científicas apoiadas pelo Serrapilheira. A motivação vinha simultaneamente do desejo de divulgar a fortuna da ciência produzida no Brasil em ambientes da imaginação, mas sobretudo de dar relevo a um trabalho que se tornou alvo de perseguições negacionistas. Em outubro de 2021, a ciência brasileira sofre um baque de proporções trágicas. Mais de 90% do orçamento para a ciência no país foi cortado, há um projeto de destruição em curso. Novamente, é preciso falar de ciência. E desta vez, mais especificamente falar de quem a produz.
Esta série em parceria com o Serrapilheira chama-se A ciência como ela é, e reúne crônicas e ensaios literários inspirados em cientistas de todo o Brasil que, de dentro de seus cotidianos e pequenos grandes feitos, nos tocam nas dimensões mais essenciais e afetivas de nosso relacionamento com o mundo.
A ciência como ela é tem edição da pesquisadora e curadora Carol Almeida e imagens do ilustrador e animador Matheus Mota. Clique aqui e leia os demais textos publicados.
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1.
Um alerta: o sotaque de Angélica Thomaz Vieira é muito gostoso. Nascida em Belo Horizonte, passou muito da infância em Gororós, perto da Serra do Cipó. É o sotaque mineiro “normal” – o ritmo de causo, o apego a vogais – , mas me faz pensar que tudo o que vem a seguir deveria ser um audiotexto (?) lido por ela.
2.
Estou em GMT-7 e ela GMT+1, diferença de oito horas, ela existindo num futuro, não equivalente, que desconheço. Angélica é professora universitária com pós-doutorado e ampla experiência no exterior, dois filhos e um esposo pesquisador. Eu me mudei para Albuquerque, Estados Unidos, em julho de 2021 com uma bolsa de mestrado. Na semana em que tentamos marcar uma entrevista online, a filha dela estava com covid. Em outra, foi minha vez de estar correndo com uma mudança improvisada com um marido e dois gatos. Logo antes de eu receber o marido e os gatos nos Estados Unidos, em dezembro de 2021, tive uma crise de choro com minha orientadora em que perguntava se um doutorado valia a pena.
3.
O primeiro contato que tive com Angélica foi através do bom e velho stalking: fuçar as redes sociais de alguém. Antes de ouvir o que ela tinha a dizer para mim, quis ouvir o que ela tinha a dizer abertamente. Encontro no Facebook:
- Textos contra o sucateamento da ciência no Brasil;
- Chamadas para eventos, submissões abertas para journals científicos, parabenizações pelo Dia do Biólogo;
- Boas memórias, os filhos, passeios de bicicleta com amigos, a filha com equipamento de pedal, o filho fazendo um anjo de neve, a família (com os filhos), a filha dentro do laboratório olhando um microscópio.
De primeira, os itens pareciam se contradizer. Por um lado, compartilha o texto Surviving as a young scientist in Brazil, da revista Science, que nos diz: cortes orçamentários, ameaças ao pensamento científico. Por outro lado, um texto na The Economist sobre What if everyone’s nutrition was personalised?, que nos aponta: olhe só o que produzimos, a importância do que fazemos, a microbiota e seu impacto no sistema imune, como estamos mudando e adaptando a realidade à nossa volta. Por um terceiro lado, os filhos brilham, ao lado do marido.
Nos itens a e b, vi a chama: Angélica convida. Convida para um ambiente que não promete ser seguro, não promete ter as respostas ou incentivo sempre. Mas por outro: olhem como produzimos importância e conhecimento, apesar de tudo. Deveria ser assim? Uma pessoa pesquisadora não deveria contar apenas com a “a paixão pela ciência” como força motriz do trabalho – e tampouco isso deveria ser pré-requisito. Mas, no momento, é o que mantém a pesquisa funcionando no Brasil.
Uma visão machista poderia dizer que o embate entre a posição de mãe e pesquisadora nunca terminaria. Para mim, o chamar a filha de “pequena cientista” em uma das postagens me diz que não há uma disputa, não há uma oposição. É uma dúvida que nunca surgiria a um cientista homem com o mesmo tipo de postagem.
O currículo Lattes aponta graduação, mestrado, doutorado, doutorado sanduíche, pós-doutorado no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), em Estrasburgo, na França. Tem premiações como o Young Woman in Science e o Thereza Kipnis (ambos promovidos pela Sociedade Brasileira de Imunologia, SBI) e o Para Mulheres na Ciência 2018, promovido pela L’Oréal-Unesco-ABC. Este último – uma entrevista revela –, ela soube que havia ganhado enquanto amamentava. De novo, não há contradição aí.
4.
A pesquisa de Angélica é focada em respostas inflamatórias e em bactérias do intestino humano – o que se costumava chamar a “flora intestinal” é a microbiota intestinal. Micro – pequenas –, biota – organismos, vida. Na forma como eu entendi, todas as pequenas vidas que movem uma maior. É um sistema. Assim como ela.
5.
Alguns metabólitos na microbiota intestinal – Angélica explica ao participar do Imune, o podcast da SBI – são capazes de ativar células do sistema que defende o organismo do indivíduo. Ou seja, a microbiota intestinal tem direto impacto no sistema imunológico. O grupo de pesquisa de Angélica, inclusive, tem analisado como essas alterações se relacionam com o vírus SARS CoV-2. Pesquisas anteriores com pacientes com influenza mostram que uma infecção nos pulmões, local de início da doença, é capaz de modular a estrutura da composição da microbiota intestinal – e essas alterações podem alterar respostas pulmonares, num sistema complexo.
A pesquisa do grupo coordenado por Angélica demonstra que não só indivíduos com covid-19 grave têm alterações na microbiota intestinal. Pessoas com sintomas leves ou até mesmo assintomáticas parecem apresentar alterações persistentes nas bactérias do intestino. Quando se comparam os hábitos alimentares de indivíduos com sintomas leves ou moderados, as alterações da microbiota são as mais significativas naqueles com dietas menos saudáveis (poucos alimentos com fibra etc.). Muitos dos sintomas da discutida “covid longa” podem se associar com essas alterações.
6.
Segundo a pesquisa Estatísticas de gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil, divulgada em 2021 pelo IBGE, mulheres dedicam quase o dobro do tempo que os homens a afazeres domésticos e cuidados de pessoas na casa. E isso independentemente da profissão da mulher – pesquisadora ou não. Se você é mulher, imagine ter 10 horas a mais na semana. Se você é homem, encontre onde remover 10 horas.
7.
A informação que recebi é de professora na UFMG, pesquisadora do Instituto Serrapilheira, mas o telefone que tenho é +33 (código de área francês). Pergunto a Angélica como, e onde, estão as coisas agora.
Ela está em Estrasburgo no momento de escrita deste artigo, com o marido, que também é virologista imunologista. Alternam entre períodos juntos ou separados, ele um pouco no Brasil, ela um pouco na França. Mais recentemente, ela enfim encontrou um financiamento para participar de um projeto na cidade, em colaboração com uma pesquisadora francesa. Rafael e Estela, que já conheci por meu stalking, têm três e cinco anos, respectivamente. As crianças vão à escola, mas ainda não estão todos habituados ao francês. Com todo o tempo no laboratório, Miriam – a avó, a mãe da mãe – está junto deles no momento por motivos que me parecem autoexplicativos. Angélica mantém as demandas do Brasil de professora: está afastada das atividades docentes, mas apenas em teoria, porque segue com as aulas e os processos de pesquisa.
8.
Ao ouvir de machismo, comenta que é algo às vezes tão embutido na cultura, que ela não saberia apontar de imediato uma situação. Reflete de momentos em que se queixou e foi chamada de “exagerada” ou “chiliquenta” – silenciamentos comuns a mulheres que não estão satisfeitas. A maternidade explicitou mais as coisas. Mais de uma vez, ouviu sobre o ser mãe como um empecilho, uma escolha, um “abandonar da carreira”.
9.
– Eu sinto que tenho que me esforçar muito mais que meus pares, mesmo com currículo igual, mesmo com a mesma capacidade de pensamento e ciência, eu sinto que tenho que estar sempre 20 vezes acima da minha capacidade de um colega homem.
10.
Em 2009, fez parte de doutorado como sanduíche na Austrália no Garvan Institute of Medical Research. Essa, de novo, uma linha do Lattes. Seria a primeira vez no exterior, com um sotaque que não é o comum de filmes. A decisão foi num impulso – uma vontade mais de ir para o exterior, mais de melhorar o inglês, mais de morar sozinha plenamente pela primeira vez na vida –, vontade maior do que só “pesquisar”. Sabia do risco, de deixar uma família sozinha, dos, se diretamente, 13.812 km separando. Não sabia de dormir na frente do laboratório no dia em que se esqueceu da chave tarde da noite e não tinha ônibus, dinheiro ou telefone. Se soubesse demais, talvez não tivesse ido.
Não sabia que seu projeto acabaria incorporado numa pesquisa maior que acabou publicada na prestigiosíssima revista Nature, algo que ecoa até hoje não só no Lattes – mas na vida.
Um dos supervisores, ao final do seu período de estágio, comenta que tinha baixas expectativas por ela ser brasileira. Não achava que brasileiros trabalhavam tão bem – numa equipe composta de muitas pessoas de origem chinesa e japonesa. Esse supervisor até hoje responde e-mails, fala de pesquisa, recomenda chamadas, conversam entre si. Isso para ela é o troféu: mudar um paradigma não só na pesquisa, mas também nos indivíduos.
11.
Mais de uma vez, nas perguntas, me comenta da importância de conexões, da importância de pessoas que trabalham juntas, de como conexões fazem a ciência progredir imensamente. Aquela coisa de sistema.
12.
O ser mãe, os preconceitos que vêm junto, não são imposições do “Brasil”, da academia, mas que começa desde o meu ponto de vista. Desde que começamos a pensar na história de Angélica, por ela ser uma mulher. Que se repete na seleção de concursos, em que ainda ouviu que não estava no momento de vida ideal porque estava grávida. Que recorre no medo de ser maltratada ao dar a notícia a um chefe em Estrasburgo (na primeira ida, em 2015), em concursos, em levar os bebês a situações em que era a única mulher pesquisadora. Um cientista que é pai consegue trabalhar normalmente por nove meses, não sente enjoo em laboratório. É todo um sistema.
Ao mesmo tempo, eu, falando de toda essa superação, não estaria reforçando mais uma imagem da mãe salvadora que consegue tudo, o “exemplo”? E seria ela um exemplo, ou apenas uma mulher existindo e seguindo seus desejos na vida? Eu, como pessoa interessada em carreira acadêmica, quero saber disso. Quero falar disso. Porque sei que é difícil, independentemente das causas. Porque, por mais que queira mudar o sistema – destruí-lo, que seja – , eu estou dentro dele e entender as regras do jogo me ajuda a manejar. Não criamos mais uma super-heroína inalcançável ao só falar da “superação”? Ou criamos um alguém que mostra que é possível, mas não nos mente: não será fácil. Seria injusto excluir de Angélica essa identidade, de mãe, de cuidadora, de esposa.
13.
Miriam – a mãe de Angélica, a avó que agora ajuda com os netos na França – perdeu duas filhas muito jovens. Perdeu a primeira filha com dois anos de idade, afogada, enquanto a segunda nasceu natimorta. Após o nascimento saudável do irmão de Angélica, ela queria uma menina. O médico foi proibitivo. Aos 37 anos de idade e com o histórico poderia haver riscos genéticos e para a própria mãe. A mãe decidiu que tentaria em 1982. Por que mulheres decidimos que tentaremos, quando um especialista nos diz que não devemos?
Ao saber que estava grávida, a mãe e o pai de Angélica esconderam do médico. Sabiam que não aprovaria. Ele poderia querer induzir um aborto por causa das condições clínicas prejudiciais à mãe e ao bebê. Apenas com uma gravidez de sete meses, Miriam o visitou. Ele decidiu que não faria ultrassom, “como se fosse um animalzinho”, porque fosse o que fosse que estivesse acontecendo, já era irreversível. Não havia intervenção possível. Angélica nasceu perfeita. A rebeldia da mãe vingou e desafiou. Um sistema que me parece ecoar.
Angélica cresceu com a mãe e o irmão. Após a morte de uma tia, ganhou dois primos que se tornaram irmãos de criação. O pai morreu quando ela tinha 12 anos de idade, enquanto a mãe nunca havia trabalhado até aquele momento. Era, nas palavras de Angélica, “a típica mulher do interior que casou e veio para a cidade grande tomar conta da casa”. No falecimento do pai, todos ganharam responsabilidades: os irmãos de criação assumiram o trabalho anterior, a mãe começou a vender tortas. Enquanto todos trabalhavam, Angélica queria estudar. Sempre prometia que iria para a faculdade. Numa família em que ninguém foi para a faculdade, o que nos motiva a querer ir além?
A mãe – ah, mães – nunca negou esforços. Antes de falecer, o pai era vendedor de joias autônomo e, a cada aniversário, dava joias à filha. Foi a mãe que incentivou a venda dos presentes, para ajudar a bancar a faculdade, uma espécie de herança. Logo que começou a estudar, Angélica achou o laboratório. Mas o sustento veio da bolsa de iniciação científica, das joias e do apoio.
Quando fez a seleção de mestrado pela primeira vez, a única prova em que não passou foi a de inglês. Nunca tinha tido condições de estudar o idioma. Os irmãos, por outro lado, insistiam que trabalhasse para ajudar a sustentar a casa. A mãe foi quem mais pediu pra ela não desistir, assumiu mais responsabilidades para que Angélica estudasse mais. Havia mais um sistema: o de apoio. Ela aprendeu que não se desiste em momentos de dificuldades.
14.
Angélica sente a responsabilidade, talvez pela história de seu nascimento, de procurar fazer a diferença. “Foram muitos investimentos pessoais em mim, tudo que tanta gente fez por mim.” O fazer a diferença. Na vida dela, na vida da mãe, agora dos filhos, do mundo que deixa para eles.
15.
Uma mulher inspiradora, ela cita, seria Marie Curie. Marie Curie foi uma das pesquisadoras pioneiras no campo de radioatividade. Curie começou seus estudos de forma clandestina, foi a primeira mulher a ganhar o Prêmio Nobel e faleceu por anemia aplástica causada por exposição à radiação. Inicialmente, Curie não ganharia o Nobel, e só o ganhou porque o marido o recusaria, se ela não estivesse na equipe. Curie se casou com o vestido que usava no dia a dia, azul-marinho, porque não quis gastar dinheiro em algo que não fosse prático. Teve duas filhas, Irène e Ève.
16.
Comento que, racionalmente, da posição de alguém que não tem filhos, se a maternidade fosse um gráfico de prós e contras, na ponta do lápis, a conta de ter filhos não fecha. É gasto, é exaustão, é custo. Precisa colocar “a alegria imensurável que os outros me falam que ter filhos causa” para ser um cálculo que pareça racional. Porque, cá entre nós, ser mãe no século XXI não parece a escolha “racional”. Penso no livro de Lina Meruane, Contra os filhos.
17.
Angélica comenta que vários componentes de nossa microbiota intestinal são capazes de produzir neurotransmissores, inclusive modeladores do sistema nervoso central. O chamado eixo “intestino-cérebro” é real. Trabalhos com doenças como Alzheimer e mesmo no espectro autista analisam essa conexão. Seus resultados apontam redução de sintomas e melhora no sistema imunológico. O laboratório de Angélica começa a ver uma conexão similar na covid-19, a perda de cognição e memória pós o vírus. Falta estudar como esses mecanismos se interconectam e quais são as estratégias de tratamento. O sistema.
18.
Episódios de assédio antes ainda de entrar na faculdade, abusos de poder, custaram a aparecer até que. E ensinaram a raiva, a frustração, o não deixar que homem nenhum mais. Ensinaram a passar por cima disso, seja para atropelar ou para enterrar mais, e se mostrar acima disso.
19.
Todas as vezes em que conseguimos falar, Angélica tenta falar baixo pra não acordar os filhos.
20.
Os resultados preliminares da pesquisa Parent in science perguntam sobre produtividade acadêmica durante a pandemia. Cinquenta e dois por cento das mulheres entrevistadas com filhos respondem que não conseguiram concluir artigos durante a pandemia. Trinta e oito por cento dos homens com filhos conseguiram. O número de publicações é essencial para se manter no mercado de trabalho na carreira de pesquisa.
21.
Um colega de Angélica diz que muitas mulheres com filhos usam a situação pandêmica para se justificar por falta de produção. Mas com escolas fechadas, com crianças em casa, como isso não impactaria o trabalho?
Isso sem falar do peso psicológico no ambiente acadêmico: o medo de não conseguir desenvolver, a pesquisa é dinâmica, ela existe no laboratório, que precisa ser visitado. Martiriza, foi a palavra. E as mulheres, em especial mães, jovens pesquisadoras, não estavam conseguindo fazer “nada”.
A mudança de prioridade súbita pesa demais – em especial quando essa mudança nem sempre é equivalente. O marido de Angélica – “extremamente feminista”, ela conta – trabalha na área e divide as tarefas de casa. Mas, ao longo da pandemia, conseguiu estar no laboratório. Óbvio que ficou em casa e ajudou com as crianças, mas a parte maior das obrigações caiu à mãe. Por quê? “E não sei se isso é inerente ao fato de que alguém tinha que estar trabalhando, então seria ele, sabe?”
22.
Angélica passou dificuldade para se formar, desde o princípio: os irmãos queriam, com a melhor das intenções, que ela largasse a faculdade. Não era financeiramente viável. E mesmo assim, temos privilégios. Coisas que chamamos de “sorte” às vezes. Circunstâncias que podem ser estruturais. Meu sonho seria de que nenhuma pessoa na ciência precisasse de privilégios; que muito do que nós vemos como privilégio (como uma mãe que apoia estudar, o poder estudar) fosse visto como direito.
Alguns teóricos dizem que é injusto chamar de “amor” aquilo que é trabalho não remunerado. Estendo esse mesmo problema que vemos na academia hoje: usamos “amor” como um pedido de “trabalhe de graça”, ou “trabalhe por esta bolsa unha de fome porque você ama o que faz”. E de certa forma, amamos. Ou somos socializadas a amar. Não deixa de ser um sistema, uma estrutura.
– Hoje eu já me sinto plena – Angélica diz.– Sou bióloga, mãe, esposa, estudiosa, conquistei vários prêmios e só realizei tudo isso porque não desisti em nenhum momento.
Então remoo esta pergunta, com Angélica, com a mãe de Angélica, com Marie Curie, comigo mesma: por que não desistir? O que move essas mulheres? O que nos move, mulheres?
Sabemos que o jogo não é sempre justo. A compensação financeira (e afetiva, em muitos casos) nem sempre de fato compensa. Mas sabemos que é desconfortável estar na posição que não queremos, a posição menor. Sabemos o quanto cansa fazer apenas aquilo a que somos autorizadas. Acabamos escolhendo o incômodo de ir atrás do que queremos.
23.
– A coisa que mais aprendi é que tem hora que, sim, tudo parece muito mais difícil, muito mais complicado, e com pessoas querendo te detonar. Mas eu tento mostrar para as pessoas, em especial para jovens, para alunos, que existe um lugar melhor. E eles têm que buscar o melhor, não importa onde, não importa de que forma. Mesmo em situações ruins, tem algo positivo. Eu sou muito otimista nesse sentido. Mas tem um otimismo no tentar trazer que eu também pensei que não daria conta, que não conseguiria carregar um fardo ou um trauma. Eu tento excluir o negativo e filtrar ao menos aquilo que é positivo. É o mais importante.
24.
Ainda vejo o paralelo da microbiota intestinal, só que não de protozoários e bactérias. É um ecossistema. E – aqui é uma leitura bastante minha – um ecossistema que produz um monte de riquezas onde alguém de fora só veria detrito (merda mesmo). E exige um certo ir além de palavras-rótulo generalizadoras. Ainda vejo nossas características em paralelo respondendo às mesmas perguntas. Uma resposta que é muito pessoal para por que fazemos isso? E uma resposta que é particular para cada uma de nós (sejam Marie Curie, Angélica, eu, a mãe de Angélica).
25.
A gravidez da primogênita, Estela, foi planejada, mas ocorreu um pouco mais rápida do que o previsto. Angélica estava na França no pós-doutorado. Um colega, ao vê-la passar mal e sozinha nos primeiros meses de gravidez, a puxa de lado:
– Se isso está causando tanto mal, você sabe que o aborto aqui é legalizado, não sabe?
26.
Ao falar desses temas, do medo de declinar da carreira com a maternidade, da síndrome do impostor, da importância da participação do marido e de sua própria mãe, surge a frase de Angélica:
– Na ciência, estamos sempre lidando com questionamentos, não é?
Aqui vejo a vida de Angélica, pessoa, pesquisadora, mãe, mulher num único verbo: questionar. Vejo também a resposta à pergunta do motivo. Desafiar aquilo que lhe foi imposto, na área onde está, nas caixinhas em que insistem. Ela talvez não queira ser exemplo de coisa alguma. Talvez goste da admiração de alunos, de poder trazer mais pessoas para o campo, de mostrar que é possível. Ela quer ser um indivíduo, com suas vontades e buscas. Ela quer ser mãe. Ela quer ser cientista. E faz isso acontecer como pode. Angélica continuou porque é o que quis, porque é o futuro que optou por ver, por passar dificuldade para criar algo maior. Voltamos às postagens da rede social: é difícil, mas é o que nos move.
27.
Comento em uma troca de áudios com ela a minha pergunta. Por que fazemos isso tudo? Ela me diz: “suas perguntas são as mesmas que tenho sempre! Por que sempre escolho as rotas mais tortuosas?”
Pelo menos me sinto no caminho – tortuoso, mas certo.