A ciência como ela é 2 Matheus Mota fev.22

Em agosto de 2020, quando a pandemia de covid-19 ainda exigia de cientistas ao redor do mundo noites insones numa corrida para buscar uma vacina e entender de que maneira o vírus se comportava e se espalhava, o Pernambuco, em parceria com o Instituto Serrapilheira, lançou uma série de contos inéditos, escritos por 12 escritoras e escritores brasileiros. A série foi batizada de Botão Vermelho, o índice de "urgência" implícito ao nome. A ideia era fabular com inspiração em pesquisas científicas apoiadas pelo Serrapilheira. A motivação vinha simultaneamente do desejo de divulgar a fortuna da ciência produzida no Brasil em ambientes da imaginação, mas sobretudo de dar relevo a um trabalho que se tornou alvo de perseguições negacionistas. Em outubro de 2021, a ciência brasileira sofre um baque de proporções trágicas. Mais de 90% do orçamento para a ciência no país foi cortado, há um projeto de destruição em curso. Novamente, é preciso falar de ciência. E desta vez, mais especificamente falar de quem a produz.

Esta série em parceria com o Serrapilheira chama-se A ciência como ela é, e reúne crônicas e ensaios literários inspirados em cientistas de todo o Brasil que, de dentro de seus cotidianos e pequenos grandes feitos, nos tocam nas dimensões mais essenciais e afetivas de nosso relacionamento com o mundo.  

A ciência como ela é tem edição da pesquisadora e curadora Carol Almeida e imagens do ilustrador e animador Matheus Mota. Clique aqui e leia os demais textos publicados.


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Normalmente, um biscoito recheado contém: farinha de trigo, açúcar, xarope de açúcar, ácido fólico, gordura vegetal, margarina, cacau em pó, leite em pó integral, carbonato de cálcio, amido, sal cloreto de sódio, açúcar invertido, sulfato de zinco, bicarbonato de amônio, pirofosfato dissódico, bicarbonato de sódio, aromatizante, corante caramelo, corante carmim, cochonilha, clorofila emulsificante, lecitina de soja, propileno glicol e glúten.

Sei disso porque, logo depois que eu recebi meu habeas corpus, Erika me levou para casa de praia dela, em algum ponto muito oriental do país. Lá perto, tinha o que se chamava de “piscinas naturais”, que era o que acontecia quando a maré baixava e, entre um arrecife e outro, água do mar e espécies diversas ficavam presas, digamos assim.

Eu imaginava que ali devia ter bichos misteriosíssimos, quem sabe até o Octopus insularis, o polvo dos arrecifes do Nordeste. Mas o que os turistas queriam ver mesmo eram os peixinhos azuis cintilantes (eu também queria), que os cercavam caso eles levassem alguma guloseima que nem peixe, nem ninguém, devia comer. Naquele dia, num misto de cansada, eufórica e com medo do mar aberto, entrei na piscina natural para mijar, não vou mentir. Lá, tinha um pai a partir em pedacinhos, diante dos dois filhos pequenos, um biscoito recheado que não vou dizer a marca porque já basta a prisão política – porque era só o que faltava eu ter, além do governo, uma multinacional de comida ultraprocessada atrás de mim.

Em poucos segundos, o trio foi cercado por dezenas, depois centenas, de peixinhos azuis cintilantes, para indignação de outros turistas que, trazendo apenas humildes pedaços de pão francês velho, já não atraiam mais para si a atenção dos peixes. Peixes estes que, devido aos anos sendo atração turística, empanturrados com glúten, talvez também sofressem, como os humanos que lhes “antialimentavam”, dos males típicos que a classe trabalhadora daqueles tempos sofria (pressão alta, diabetes, hérnica umbilical, depressão, ansiedade, tédio etc.).

Fiquei observando a cena, estupefata: um peixe comendo açúcar, em forma de um biscoito que nem barato é. Um peixe comendo açúcar e farinha num dos estados mais desiguais do país, onde faltam açúcar e farinha para tanta gente.

Bem que eu queria dizer: moço, peixe não escova os dentes. Mas na conjuntura que vivíamos, de desmonte da educação pública e descrédito da ciência, eu não podia querer que todas as pessoas tivessem acesso ao mesmo tipo de informação que eu tinha. Eu conseguia fazer a leitura de classe ali: meu capital cultural permitia que eu chegasse na piscina natural não somente com vontade de fazer xixi, mas também com dados científicos na cachola. Nesse Estado tão desigual, a desigualdade se refletia também no acesso à educação. Eu sabia sobre soberania alimentar e libertação animal, também sabia como o agronegócio e as indústrias alimentícias estão intimamente ligados com o desmatamento na Amazônia e espécies entrando em extinção e tal e coisa. O Homem do Biscoito Recheado talvez tivesse tido acesso às mesmas oportunidades que eu – mas talvez, não.

Saber disso tudo, no entanto, não me impediu de chegar em casa num mau humor do caralho, abrindo a porta esbaforida e suada, ao mesmo tempo que já fui contando dos peixes comendo agrotóxico. Só quando terminei meu monólogo é que me dei conta o quanto Erika estava abatida. Erika, desanimada assim? Isso era novidade.

– O que foi, viada?

– A 33 morreu.

Conhecendo Erika como a conhecia (ou seja, desde a época que ela queria ser atriz, e bancava de detetive desvendando mistérios familiares, e nos contava da vó, Dona Pepa, amiga de uma certa autora bruxona que escreveu sobre baratas; tudo isso, claro, foi muito antes dela virar a cientista Erika Berenguer, pesquisadora sênior das universidades de Oxford e Lancaster, na Inglaterra, membra do Scientific Panel for the Amazon da UNSDN, uma organização da ONU, e coordenadora do grupo de pesquisas multidisciplinares Rede Amazônia Sustentável), conhecendo Erika como eu a conhecia, sabia que isso era importante. Eu sabia, boa ouvinte como sempre foi, que ela prestaria atenção ao meu relato sobre os peixes sem soberania alimentar, mas sabia também que a morte da (árvore) 33 tinha prioridade na fila de assuntos daquele meio-dia.

– Quem era a 33?

– Era a que eu usava para almoçar. Ela tinha um tronco largo com uma fenda comprida que dava para eu me recostar bem direitinho. Na frente dela tinha uma árvore enorme que foi serrada há muitos anos, que servia de mesa. Era como se fosse nosso refeitório. Toda a equipe usava esse lugarzinho.

– Putz…

– Eu sei que para quem tá de fora parece doidice, mas na floresta a gente também tem nossos cantinhos. Do mesmo jeito que na cidade você tem sua padaria preferida, sua livraria, a esquina mais bonita, um lugar que você vai e relaxa… Na floresta é assim também. É claro que eu não sei quem é cada uma das seis mil árvores da área que eu pesquiso, mas cada uma importa e algumas são mais especiais justamente porque entraram nesse mapa emocional.

– E ela morreu de quê, amiga?

– Fogo.

– Eita, de novo?, perguntei, já sabendo que eu podia ter feito uma pergunta melhorzinha.

Fogo na Amazônia é novidade, pode-se dizer assim, e isso aprendi com Erika: até os anos 1980, os incêndios florestais eram raros. Mas as mudanças climáticas tornaram as florestas mais secas e mais quentes, e a atividade madeireira, tantas vezes ilegal e quase sempre sem controle, tornou a floresta mais inflamável, já que o desmatamento permite que entrem mais sol e vento no interior da mata. E é por isso que os incêndios têm aumentado muito, de lá pra cá, ao ponto de alguns cientistas afirmarem que estamos vivendo no Piroceno, ou “a era do fogo”, já que tantas florestas estão queimado mundo afora, da Sibéria à Amazônia, passando pela Austrália e Califórnia.

*

Naquele dia de 2022, pela primeira vez na vida, conversei com Erika não como minha amiga de infância, mas como a cientista que ela era. Claro que eu sabia o que ela fazia, de vez em quando lia uma entrevista dela em algum jornal famoso, e assistia aos vídeos que ela indicava; então, sim, eu estava por dentro, aliás, eu era até bem interessada naquele mundo, porque saber do trabalho dela era o que nos mantinha próximas, mesmo quando Erika passava meses a fio na Amazônia, dando pouca notícia, mandando umas fotos do que para mim parecia ser só um mói de mato, com as legendas mais entusiasmadas falando da árvore tal, e eu ficava “mas gente, cadê?…”. A diferença, dessa vez, era que, até então, eu nunca tinha parado para fazer perguntas.

– Como foi que começou, amiga?

– Eu ainda não sei a causa deste especificamente, mas o que a gente sempre sabe é que toda queimada na Amazônia é causada por humanos.

– Existe uma diferença nos tipos de atividades humanas que iniciam as queimadas, amiga? Porque assim, não acho que dá para comparar a intencionalidade de madeireiras ilegais e de Seu Zé, agricultor familiar, plantando ali para a própria subsistência.

– Veja: o fogo é usado há muito, muito tempo, pelas populações locais, na agricultura de subsistência. O que se chama, por exemplo, de “coivara”, é quando se queima uma área que estava em repouso para depois se preparar o roçado. Uma queimada de coivara é pequena e essencial para a sobrevivência das pessoas. Às vezes ele escapa, infelizmente, e pode atingir as florestas vizinhas. Já as queimadas de desmatamento são aquelas usadas no processo de remoção de florestas, elas têm uma dimensão bem maior e são incentivadas pela especulação de terras e pelas demandas do mercado doméstico e global.

– Mercado de quê?

– Tanto por carne quanto por soja para produção de ração animal. Cerca de 79% da soja no mundo é esmagada para fazer ração animal. Os outros 18% vão para produção de óleo de soja, que é o óleo usado para fazer gordura vegetal e que…

(interrompendo Erika)

– … é o óleo usado para fazer o biscoito recheado que está matando os peixinhos da piscina natural!

– Sim, Vashti, está tudo conectado

– Dá para dizer que o tamanduá que morre queimado na Amazônia é vítima do mesmo algoz que mata o peixinho azul cintilante?

– Veja, a culpa não é necessariamente do homem que estava botando o biscoito recheado na boca do peixe. A culpa é de um sistema cheio de defeitos e que faz sofrerem peixes, tamanduás e seres humanos, inclusive o que dá biscoito aos peixes.

– Amiga, vamos dar nome aos boys: a culpa é do capitalismo e dos poderosos que o defendem, protegem ou ao menos dançam conforme sua música macabra.

Que horror.

– Sim, é um horror. Mas se essas queimadas não são causadas pela natureza, e, sim, por esse modo de produção defeituoso, sabemos que há solução, sabemos que dá pra consertar.

– Ou então podemos substituir um sistema por outro…

– Veja bem, minha pesquisa é sobre impactos do fogo e da extração madeireira, e como isso se relaciona com a mudança climática. Ainda sabemos muito pouco. Já meu papel como cientista é questionar as fachadas, analisar as evidências; é fazer com que a pesquisa chegue a mais pessoas, popularizar a ciência e o papel da Amazônia; meu papel é o de sensibilizar os tomadores de decisão, é gerar essa interação entre ciência e aqueles no poder; meu papel é descobrir os mecanismos de recuperação das florestas, principalmente, após um distúrbio.

– O que é um distúrbio?

– É o fogo.

– Ah, tá.

– Então, voltando: meu papel é descobrir os mecanismos de recuperação das florestas, principalmente, após um distúrbio, e gerar interação entre a ciência, entre as descobertas científicas, e os tomadores de decisão.

– Mas a gente precisa de outros tomadores de decisão, amiga, porque esses não estão a nossa altura. E era bom outra forma de produção, também, na moral.

– Concordo. De fato, o mais importante é que devemos insistir em mudanças estruturais.

 

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*

Ficamos as duas em silêncio, por um tempo. Não sei quanto, exatamente, mas na época estávamos todos tão desesperançosos… Anos de peste bubônica, cólera, gripe aviária, gripe suína, xanha, sífilis. Anos de um primeiro-ministro que era um misto de perigoso e bunda-mole, que ao mesmo tempo não matava ninguém e matava todo mundo.

Se eu soubesse, naquele começo de 2022, que as coisas começariam a dar sinais de melhora em breve – com a eleição de um jovem presidente anticapitalista – e que agora, 30 anos depois, estaríamos vivendo um período de transição radical, eu teria sofrido menos, mas nunca dá pra saber. Até porque poderíamos ter ido no caminho oposto. Poderia ser que eu não estivesse nem viva para escrever esse texto. Eu me lembro de 2022 como um ano em que tínhamos muitas tarefas a cumprir, mas eu as cumpria por disciplina militante, numa espécie de esperança automatizada, racional, e não de confiança, porque a verdade é que a gente vivia era com medo de morrer, de morrer de forma bruta, como Rosa Franco, ou em uma enchente, como nossas companheiras em Ilhéus, ou um tsunami (afinal a nossa cidade era 1ª capital brasileira e a 16ª cidade do mundo mais ameaçada pelo avanço do nível do mar, causado não somente pela nossa geografia mas, sobretudo, pela mudança climática e pela desigualdade social). Outra opção era morrer de sede, já que o primeiro-ministro tinha desmontado o programa de cisternas; ou ainda morrer num incêndio de proporções apocalípticas. E aqui aproveito para lembrar, para quem é jovem ou já esqueceu, que 30 anos atrás o semiárido ainda era uma das áreas mais afetadas pelas mudanças climáticas no planeta. Isso, claro, sem falar da tal da “gripezinha”, que matou milhões mundo afora e que, na época, ainda estava longe de ir embora.

– Eu não sabia que ainda tinha queimadas na tua área de trabalho na Amazônia, eu disse, mentindo, com objetivo enfadonho de pintar a realidade um pouco melhor do que ela estava (catastrófica), para poder fingir que dava para curtir aquele fim de semana na praia.

– Mulher, me poupe. Só em setembro de 2021 foram detectados uns 23 mil focos em toda área da Amazônia Legal. O desmatamento teve aumento de 22% ano passado, a maior taxa nos últimos 15 anos. Um estudo constatou que, no sudeste da Amazônia, na estação seca, a temperatura aumentou 2,5 graus nos últimos 40 anos. Isso é verdadeiramente apocalíptico. Aqui, no Nordeste, houve uma redução de 34% nas chuvas na estação seca… E o primeiro-ministro tem coragem de chamar as queimadas de fogueira de São João!

– É um arrombado mesmo, que ódio! A pessoa não sabe se quer matar ou se matar… Quando fico sabendo dessas coisas me dá um desânimo, amiga. Esses dias Carol P. fez um workshop com uns ambientalistas australianos, porque lá eles também sofrem muito com queimadas e mineração ilegal, e o cara que ministrou o curso falou que precisamos nos acostumar com a ideia da morte por catástrofe climática. Ele falou algo do tipo: a geração dos nossos avós podia contar com uma morte por guerra ou em condições de trabalho terríveis mas, para nós, a chance de morrer por catástrofes climáticas é algo que precisa ser levado a sério, é algo que precisa nos revoltar. A pessoa ouve uma coisa dessa e fica “caralho, dá pra sentir esperança em alguma coisa”?

– Eu não sei direito, essa é a pergunta de um milhão de dólares. Sei que, se passarmos do ponto de inflexão (e nunca saberemos qual é o ponto de inflexão até que o superemos, essa é justamente a definição de um ponto de inflexão), é o fim, e não digo isso levianamente. Estamos falando sobre o colapso do lugar de maior biodiversidade do planeta, com milhões e milhões de pessoas se tornando refugiados climáticos. Os padrões de chuva serão alterados em toda a América do Sul. Sem chuva não teremos hidroeletricidade, por exemplo. Não podemos viver em um mundo sem a Amazônia. Mas também sei de uma outra coisa: se eu não tivesse esperança, eu não trabalhava com isso. Durante minha vida, vi uma redução de mais de 80% no desmatamento, entre 2004 e 2012.

– Que foi a época do governo do PT.

– Não foi fácil conseguir isso, foi necessária a coordenação entre várias agências, mas foi feito. Então, por que não podemos ver isso acontecer de novo?

Fui para o quarto, onde tinha ventilador e um mosquiteiro. Eu não queria usar ar-condicionado porque com eles não dá pra sentir o cheiro da palmeira-sagu, que explode em dezembro. Fiquei pensando no governo que tínhamos naquela época… Quando fui presa, em 2021, passei mais tempo na cadeia por ter organizado entregadores de aplicativo do que nosso primeiro-ministro, que matou um milhão de pessoas e que agora está foragido, procurado pela Interpol. Mas depois eu fui inocentada. Ele, não.

*

Tem uma palavra em alemão que eu aprendi a adorar, Begeisterungsfähigkeit, que poderia ser traduzida como “capacidade de se encantar com as coisas”. Quando nos conhecemos, Erika tinha acabado de chegar em Piratininga e eu também. Deve ter sido isso que nos aproximou – as duas estrangeiras, por assim dizer. O fato de Erika ser, desde pequena, uma espécie de Sherlock Holmes da vida cotidiana era extremamente atraente para uma criança como eu, que não falava a língua, mas entendia os símbolos. Era difícil resistir à curiosidade que ela demonstrava por toda sorte de temas, curiosidade que denotava uma paixão também pelas vidas humanas e não humanas na Terra. Era essa sua curiosidade que me guiava numa terra estranha e hostil. Em resumo, Erika é cheia de Begeisterungsfähigkeit.

Era com essa capacidade de encantamento que ela percebia (e questionava) também as coisas do mundo social. Por exemplo: esse espírito investigativo a fez descobrir, sozinha, aos 14 anos, que o pai havia falido, dado um calote na transportadora que levara os caminhões com as coisas da família de Carioca até Piratininga; as coisas abandonadas no armazém foram todas leiloadas, por conta do calote. Com essa mesma capacidade de encantamento, Erika questionava a superfície da forma que ela mesma vivia – menina criada num bairro chique, que frequentava uma escola cara, que não precisava ter muito medo quando andava pelas ruas de Paranapuã, mas dormia sozinha no armário cheio de baratas, de favor, na casa enorme e vazia dos avós. E com essa mesma postura investigativa, Erika se descobriu mulher branca, mas só depois que chegou à floresta. Curiosamente, foi lá – cercada de homens não brancos que nem sempre a levam sério, apesar dos diplomas, e que não têm medo de um potencial pai poderoso, como eles talvez tivessem no contexto urbano de classe média – que ela viu e entendeu as portas abertas por uma pele branca num país racista como o nosso, e também a responsabilidade que temos em perceber, questionar e recusar essa arbitrariedade.

Em resumo: Erika questionava as fachadas desde antes de se tornar cientista, e assim não foi nenhuma surpresa quando ela abriu mão da ideia de ser atriz.

Quando o sol baixou, saí do quarto. Fui andando até o outro lado da praia, até o mangue, onde tem o encontro dos três rios (naquela época muito sujos, hoje recuperados). Queria ver os caranguejos. E vi. De toda sorte, de toda cor. E me lembrei daquele poema de Gullar, o estúpido Gullar, que em 2012 disse, numa entrevista para revista Veja, que “O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas. É um criador, um indivíduo que faz coisas novas”. Deus me livre de envelhecer e emburrecer assim. Mas lembrei do outro Gullar, o camarada, ainda lúcido, o de 1975, que escreveu:

“O sofrimento não tem/ nenhum valor (...) Sofres tu, sofre/ um cachorro ferido, um inseto/ que o inseticida envenena./ Será maior a tua dor/ que a daquele gato que viste/ a espinha quebrada a pau/ arrastando-se a berrar pela sarjeta/ sem ao menos poder morrer? (…) A dor/ te iguala a ratos e baratas/ que também de dentro dos esgotos/ espiam o sol/ e no seu corpo nojento/ de entre fezes/ querem estar contentes.”

Quando cheguei em casa, já de noitinha, cheia de picada de maruim de mangue, ainda maravilhada com os sons que de lá saem (estalos de dedo? tongue popping?), Erika estava de frente para o mar, mas ainda no mesmo banco, papéis na mão. Me disse: “nunca estive tanto tempo sem ir à Amazônia.” Eu também nunca estive tanto tempo sem ir ao Sertão, pensei. Aliás, sinto saudade de lá desde antes de nascer.

Como fazer para voltarmos? Quando terminaria aquela pandemia? O que era necessário para salvar o mundo? Erika não era filiada em partido, não era sindicalizada, não participava de nenhum movimento social, era cientista, mas qual era a utopia de Erika, o que ela queria para o mundo?, perguntei.

Como não obtive resposta, perguntei onde ela tinha achado papel, peguei uns pra mim, fui para o quarto e escrevi esse poema, que depois saiu no meu último livro, asma:

no terceiro surto de cólera
que começou na rússia
e foi parar na inglaterra
matando muita gente
eu já morava aqui fazia tempo
e a cólera veio também
doenças são como as nuvens
coisinhas subversivas
não viajam com passaporte pois
não reconhecem fronteiras

me acusaram de bruxaria
por receitar soro caseiro
para os doentes e
faxina para os saudáveis
dedurada eu quase morro
fugi de madrugada
e olhe que não curei poucos
mas para os fidalgos pouco
importam as vidas salvas
para eles o importante
é que corpos operários
estejam sob controle e
que bebês estejam sempre
a caminho custe o que custar
em buchos proletários

no nordeste brasileiro
a epidemia dos anos 90
durou uma década
com mais de 150 mil casos
e quase 2 mil mortes
parece piada diante do que viria
mas disso eu não sabia
pois sou velha não vidente
fiquei muito preocupada
dessa vez eu já estava presa
numa cadeia doença é fogo de palha
melhor que nunca arrebente

felizmente com seu controle e eliminação
dos anos 2000 pra cá
apenas casos isolados
contraídos de outros países
foram registrados
num google rapidão
você fica sabendo que a causa oficial da cólera
segundo a oms
é um negócio chamado “pobreza”
e que o tratamento deve ser antibiótico

mas se a pobreza é a causa da doença
em vez de erradicar a doença não seria mais sensato
erradicar a causa da pobreza?

*

Bati na porta de Erika, avisei que ia no mercadinho, ela pediu goma, eu falei que minhas tapiocas são todas horríveis, esfarelam nas beiras e ficam borrachudas no centro, falei que ia comprar inhame, ela disse que inhame é bom também, e com o aval da minha melhor amiga, que além de tudo era cientista (qual outro aval importa?), saí.

Voltei e Erika não estava mais. Isso foi há mais de 20 anos. De vez em quando ela me manda, por correio, uma carta, uma folha seca ou fotos.

Sei que as coisas melhoraram não somente pela carinha feliz dela, mas também porque leio seus artigos e porque a vida melhorou, radicalmente e muito, depois de 2033. Além de fotos, de vez em quando ela me manda recortes de jornal impresso, que voltaram com tudo depois da Grande Revolta. Esses dias, por exemplo, ela me enviou um artigo maravilhoso, sobre cientistas que descobriram indícios de que há 4,5 mil anos já havia agroecologia indígena na Amazônia. Como resposta, xeroquei e mandei uma pesquisa que revelava cartas escritas em tupi, por indígenas que discutiam a Insurreição Pernambucana de 1645.

Estamos bem. O sistema, aquele cheio de defeitos, não tinha conserto e foi superado. Fez estragos que até hoje causam danos, mas a natureza (e nós somos parte da natureza) é resiliente e se cura. Aqui, no Alto Sertão do Pajeú, depois da reforma agrária popular, podemos dizer que somos donos de tudo e que tudo é de todos. “Se eu soubesse que as coisas iam mudar, tinha me preocupado menos e teria agido ainda mais”, me disse Erika, na última carta que mandou, e que chegou ontem, pelas mãos de um correio estatal, com boas notícias e cheiro de floresta viva.

 

***

Ainda que este texto se valha da fantasia para criar um encontro entre a cientista Erika Berenguer com uma interlocutora ficcional, todos os dados são científicos e os relatos são baseados em vivências reais, coletados na entrevista concedida à autora deste texto por vídeo-chamada. Caso se tenha interesse em consultar as fontes e bibliografia utilizadas, favor nos contactar no email Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..