Da última vez que vim ao Brasil o mundo era uma voz rouca a perguntar: “Tem Pix?”. Gosto de pensar que agora, no que podemos chamar — não sem alguma hesitação inconsciente — de momento pós-pandêmico, o jogo virou: “Tem aproximação?” é a frase que mais ouvi nos breves dias deste inverno quente em ritmo de gincana e lançamento de livros.
Estamos em um bar-livraria-café-restaurante, um cafarnaum daqueles muito encontradiços nas grandes cidades onde predomina o cheiro de fritura sobre o cheiro do papel. Nada contra, são apenas constatações sensoriais inevitáveis.
Estamos em Belo Horizonte e uma voz quer saber: “Tem aproximação?”. Meu amigo ri e responde com malícia mineira, com o perdão da redundância: “Não, este é só por penetração”. Como entre o sexo e o dinheiro a realização envolve sempre uma alta dose de fantasia, o garçom cansado ri, a vizinha de mesa ri, o amigo mineiro exibe um sorriso discreto mas glorioso pelos risos provocados, eu levemente encaipirada já estava rindo antes mesmo da irrupção do primeiro riso alheio, talvez mesmo antes da piada boba e irresistível. Um adendo: em Belo Horizonte provei a famigerada caipirinha de jambu, não no cafarnaum, num bar maranhense chamado Maturi, altamente recomendável, que tem o jambu, anestésico curativo da melhor cepa. Uma experiência de remédio-veneno que mudaria os rumos da poesia beat caso os rapazes tivessem essa sorte.
Digressões à parte, voltemos.
Tem sim, tem aproximação. Algumas mais difíceis que outras. Por exemplo? A questão da crítica literária. Como se aproximar disso? No meio das nuvens densas entre Salvador e Rio de Janeiro, voltando do Congresso Internacional da Abralic (na UFBA) no meio da noite desestrelada, leio um texto de Roberto Calasso sobre a resenha. Sinto que posso ter entrado numa cumulus nimbus literária rasgando os céus de um ano que cisma em não decolar. Tentemos.
O texto faz parte de um pequeno e formidável volume intitulado Como organizar uma biblioteca, título que nomeia o texto mais célebre da coletânea, toda ela gostosa de se ler. Calasso, para quem não conhece (ainda), é autor de uma literatura que em seus pontos mais altos alcança os níveis de prazer da caipirinha de jambu. Foi também, e talvez sobretudo, um editor determinante para os rumos da própria noção de edição em seu país. Era culto sem perder a simpatia e escrevia num italiano espiralado e fluido, lindo mesmo. A tradução de Patricia Peterle consegue manter os encantos da sua dicção sem concessões, mas nem por isso excessivamente complicada.
O texto Nascimento da resenha mostra com uma tranquilidade elegante que esse talvez-gênero literário devotado a percorrer a literatura, e ao qual talvez pudéssemos apelidar de “inimigo rumor amigo”, já nasceu despertando o incorrigível desejo de correção. É que mesmo quando elogiosa, a resenha crítica desperta no elogiado ou elogiada, na legião de leitores, nos editores ou simpatizantes do autor, o desejo de remendar o tom, o termo, o texto. Resumindo (mas depois, por gentileza, leiam o Calasso, que é tão breve): a resenha, segundo ele, nasceu na França pelas mãos de uma mulher — Madame de Sablé, leitora de La Rochefoucauld. Como mostra Calasso, o elogio de Sablé condensava uma visão aguda e precisa que nada poderia melhorar. Porém, ao submeter o texto ainda não publicado ao autor do livro resenhado, ela o recebe de volta com modificações que pioravam o texto original, perfeito.
Durante as últimas décadas o debate sobre a crítica literária foi pautado pela ideia ou sensação ou percepção de que a literatura havia perdido privilégios no campo da cultura, deixara de ser um fator central de adensamento da cultura, perdera a força de influência para se tornar um campo que sobreviveria nas franjas das novas tecnologias e a reboque da cultura visual em suas variegadas formas.
Com ou sem caipirinha de jambu ou piadas bobas, o lance é que o jogo parece estar virando. A literatura, ou talvez, melhor dizendo, os livros voltaram a ser objetos do desejo cultural. Ler se tornou uma espécie de expressão de cidadania, as livrarias de rua e clubes de leitura vêm aproveitando esse novo entusiasmo, se assim pudermos chamá-lo.
Pode não durar, pode ser apenas reflexo da ansiedade de leitores ávidos, mas desbussolados, pode ser efeito do consumismo em tempos de solidão, pode ser sinal de uma nova politização dos sujeitos via leitura compartilhada, tanta coisa pode ser e pode não ser. Porém o fato é que a literatura vem reconquistando espaço no campo cultural. Mas não a crítica. Esta continua a produzir apenas desejos de correção. Acadêmica, ressentida ou alienada, a crítica ainda recebe esses e outros tantos insultos quando surge em cena, mesmo quando fala baixinho, é fina, lhana, obsequiosa, não jorra fel sobre nada.
O que muitas vezes chamamos de crítica não passa muito de resenhas descritivas escritas por pessoas cuja embocadura se parece — mais do que devia — aos produtos da inteligência artificial. Esta não deveria nos assustar, o problema maior é que nossa aproximação do literário parece contentar-se com o elogio robótico.
Ainda assim, sou otimista, pois boto fé que com a chegada dos robôs glosadores que processam dados numa velocidade freneticamente desumana, as resenhas do futuro próximo serão feitas por robôs hipereducados com sotaque sudestino. Assim, voltaremos a precisar recorrer às pessoas humanas, acadêmicas ou não, ressentidas ou não, frustradas ou não, para fazer o trabalho da crítica literária. Espero que haja aproximações possíveis para além dos rancores e soberbas, pois a leitura não é questão de Pix, mas de penetração mútua entre leitorxs e textos.