Cada vez gosto mais da literatura e menos dos escritores-sendo-escritores. Incluindo eu mesma. Por isso arrumei um trabalho onde todo dia deixo cair minha pele no chão. Aprendi que preciso beber mais água pra trocar de pele tanto assim, mas nada posso contra a angústia da certeza de que precisaria de mais uma vida para escrever a literatura que gostaria de ler. Visto outra pele. Algumas peles são tão antigas que é preciso extremo cuidado ao me vestir. O melhor é que, depois de tanto tempo fora delas, nem parecem que um dia foram minhas, graças a Deus.
Não acredito em Deus, mas é um prazer evocá-lo quando o assunto sobrevoa a literatura. De vez em quando um pesquisador me reconhece pelo franzido na pele e confessa: também é poeta ou foi ou quer voltar a ser. Noto que também eles têm rasgos e dobras demais, sobretudo ali na altura dos ombros as coisas teimam em não se encaixar. Cada vez gosto mais de certos escritores embora sua literatura me seja indiferente. Gosto de pessoas e de textos. Nem sempre as pessoas de que gosto escrevem os textos que gosto de ler. Gosto mais de gostar do que de não gostar mas às vezes prefiro gostar bem pouco do que não é digno de ser muito gostado. De vez em quando eu mesma escrevo um poema que gosto de ler. Nem sempre é assim, mas pode acontecer. O contrário também.
Há um tipo de poesia que irrita. E um tipo que acalma. E um tipo que transporta. E um tipo que consola. E um tipo que tira o sono. E um tipo que o convoca. E um tipo que transtorna.
Ultimamente tenho me deparado com um tipo de poesia que é pura compilação de ideias de outrem. Ninguém está a salvo no Reino da Criação Profana mas Deus me livre escrever essa poesia. Deus me livre ainda mais de ter de lê-la. A mim não transporta, apenas irrita, ademais porque tudo se arma em tom pretensamente humilde nunca deixando de ser didático, arrogantemente didático. Se é para ensinar, que seja como a Maria da Conceição Tavares aos palavrões diante do quadro. Toda poesia poderia começar com uma frase dela – vejam que aqui também já vamos transformando a crônica em mera compilação de ideias alheias... – “se vocês estão aqui é porque são perdedores, pois se não fosse, estariam noutro lugar”.
Distribuição de imagens, figuras retóricas do medo, táticas de sedução transacadêmica. Tudo pode e tudo pode dar errado. A poesia é risco, é apenas um cisco. A menina cansa.
Infelizmente a poesia pop de hoje em dia é praticamente uma poesia para adolescentes. Nada contra adolescentes, muito pelo contrário. Aliás, a literatura de ficção adulta também tem sido escrita para adolescentes. Sally Rooney por exemplo, cruzes.
A literatura sempre recolheu restos do presente, sempre se colocou sobre a linha de continuação do fim do mundo, por essas e outras a poesia não deve se espantar com a falta de futuro. Nem abdicar da intuição de que algo extraordinariamente bom ainda possa nos acontecer.
A poesia pode ser intuitiva, epidérmica ou empírica e pode também navegar apenas naquilo que a pessoa aprendeu nos livros. Nada garante que uma seja superior à outra.
Para mim a poesia é mesmo lírica, pois escrita numa língua que oscila entre a ode e a elegia. A ode é a mãe da lírica, dizem. Anotem aí então: a natureza fundamental da ode é a de ser um elogio, mas um elogio radical. E elogio é uma espécie de homenagem. A ode pode ser pensada como a forma gloriosa do elogio, sua forma cintilante, delirante, desmesurada. Mas a elegia também é uma loucura pois é como falar com os mortos. Por isso Verlaine dizia que chovia sobre o seu coração e Baudelaire fala em colocar o coração a nu. Gosto dos poetas que sabem usar o coração, seco ou molhado.
As piores pessoas que conheci até hoje são poetas. As melhores também. Os poetas brigam muito. Parecem meninos mimados a quem falta um adulto que interrompa a barafunda e diga BASTA! Os poetas se adoram, se acalentam, criam guetos, gangues, grupelhos. Os poetas são uns pentelhos. Poetas são tão sós, se isolam, se entorpecem, se apavoram, alguns se safam, alguns se matam. A boa poesia não garante nada, sequer o dom de escrever bem.
A poesia é o único gênero literário que suspira. Oh, ah... O poeta faz perguntas. Interroga os anjos, fala com os mortos, beija a barbicha do diabo. A voz lírica não quer ter lugar de fala, quer poder ser um nó de inextrincáveis contradições. Malhar de manhã, de noite beber até cair. Ter um corpo mas ser evanescente. Dizer eu mas não para afirmar que alguém fala, e sim para chegar até a outra margem, onde o amor encontra o nada.