Meu trabalho atual consiste, entre outras coisas, em coordenar a vida de comunidades provisórias (de pesquisadores) e fazê-los conversar de modo que não estejam apenas cumprindo protocolos acadêmicos. A pesquisa como modo de vida seria o tema subterrâneo desta crônica que segue seu próprio curso e tem caprichos.
Tenho gostado do que faço, e de uma atividade em especial. Sessões de Inspiração. O nome tem algo de naif que me agrada. São sessões simpáticas, e não por minha culpa. Um dia escrevo sobre isso. A ideia é produzir uma dinâmica de troca que não seja pautada por um formato estritamente acadêmico, mas que seja capaz de reconectar pesquisadores com a paixão e curiosidade que os trouxe até ali. Acontece que por conta das sessões comecei a sonhar com novos formatos para o que quer que seja.
Digo sonhar no sentido de produzir imagens, cenas e narrativas durante o sono. Em um deles participava de uma conferência literária. Não era a Flip nem era a Flup, era uma espécie de festa junina, no estilo quermesse com zil barraquinhas. A organização do espaço tinha jeitão de bienal do livro, entretanto nas barracas coisas estranhas aconteciam.
Numa delas a diversão era atirar bolas na boca aberta de escritores. Bem vulgar como metáfora, perdão, mas sonhos, passeatas e paixões são incontroláveis. Junto à primeira barraca estava outra, nesta se podia fazer o mesmo — atirar bolas — só que acertando os olhos dos críticos, ou o nariz, o que conferia ao atirador ou atiradora o grande prêmio da feira-festa (preciso voltar ao mesmo sonho para saber qual era).
Notei que havia mesmo muitos críticos brincando na barraca dos escritores, e vice-versa. Era terrível e bastante tolo, mas todos riam muito e alto. Jornalistas de plantão escreviam, in loco, matérias sobre a batalha entre críticos e autores. Saí daquela sessão pouco inspiradora e cheguei a um pula-pula. Agora sim algo interessante acontecia, poetas marginais e hereges voando em franca emancipação épica, cantando os cantos dos antigos gregos: “Canta, ó Deusa, a cólera de Aquiles”.
No desenrolar do enredo do sonho e da feira me encontrava com um César Aira projetado em holograma. Era um homem lento, chupando um picolé da cor do maracujá e dizia a quem passava que não me assustasse porque as construções imaginárias obedecem à mesma lógica que torna reais as construções reais.
Dizem que vivemos uma época em que a crítica perdeu lugar, rumo, razão de ser. Dizem que o número de escritores supera o de leitores. Dizem que os críticos são sujos, frustrados, fedorentos. São afirmações que retornam sobre nós, ciclicamente, sem que, contudo, a gente saiba fazer com elas algo um pouco mais digno que uma polêmica entre sicranos e fulanos.
Continuava minha jornada dentro da feira dentro do sonho. Como num país de Oz, esperei que depois de Aira surgisse diante de mim o homem de lata e o leão medroso. A barraca mais graciosa e mais linda ficava no alto de uma colina que aumentava de tamanho a cada novo passo dado em sua direção.
Era uma barraquinha diferente, saída de uma fábula da Carochinha, por fora era pequenina mas por dentro seu espaço parecia se abrir ad infinitum. Era a barraca das editoras e estava dividida em duas partes: as que têm pesadelos com os livros que editam, as que editam os livros com que sonham. Perguntei como funcionava o jogo, me responderam que era um assunto insofismável. Fiquei ali olhando, eu mesma, poeta, crítica e editora, perdida na cidade dos escritores sem imaginação e na feira dos meus sonhos de crônica, colhendo o fluxo de vozes alheias para tecer livros que são lidos antes de serem comentados.
O final do sonho era bastante oblíquo. Eu sentia meu coração bater tão alto, os críticos e os escritores se aproximavam para ver o trabalho dos editores, estes permaneciam dentro da sua barraca de sonhos, alheios ao que ocorria nas barracas de bolas, costuravam capas de livros entoando uma cantiga cuja língua me era estranha. Neste ponto, um Zeppelin sobrevoava a feira, soberano, majestoso, assentado nos ares de um suspiro kantiano.