Comidas viajam em português. O atendente pergunta: “é pra comer aqui ou pra viagem?”. Mesmo sob o risco da vergonha de mentir, o impulso é sempre o de dizer: “pra viagem”. E como não? Logo qualquer traslado ganha ares de aventura, e ainda que o trajeto seja de curtíssima distância, lá vai o cliente ou você mesma carregando um sanduíche de ovo para o Sudão, fiordes noruegueses ou Itamaracá.
As pessoas viajam. Quando nascem, uma voz talvez devesse perguntar: “é pra criar aqui ou pra viagem?”. E os bebês diriam em língua de choro se vieram para uma vida de traslados ou se são feitos para ver o tempo desbotar a cor das casas de um só e mesmo lugar.
As pessoas viajam. Não todas. Poucas talvez. Bem poucas até. Grande parte das pessoas só se desloca à força ou pelos motivos mais sórdidos, e isso não é viajar, é fugir, dar no pé, desertar ou sobreviver. Viajar também pode significar sobreviver, no sentido de viver mais do que a vida definida pelos limites cotidianos pode oferecer. Mas viagens custam caro e além disso é preciso ter um corpo, e não qualquer corpo, mas um que funcione e permita realizar o traslado, mudar a temperatura, o tempero, a densidade do ar. Nem todos têm um corpo para viagem.
Em 1925 o poeta Maiakóvski dizia que viajar começava a substituir a experiência de ler: “Tenho realmente necessidade de viajar. Relacionar-me com o vivo quase substitui para mim a leitura”. Quando chegou ao México, passando por Havana no transatlântico chamado Espanha, gostou de ver hasteadas as bandeiras vermelhas com foice e martelo penduradas nas janelas de alguns apartamentos em Veracruz. Bobo que não era, sabia que não era a decoração de um edifício diplomático soviético, mas do símbolo da Proal, uma organização anarquista cujo nome homenageia o anarcossindicalista Herón Proal, também conhecido como o Lênin Mexicano. Maiakóvski também notou que os mexicanos carregavam o dinheiro em grandes sacolas, sentiu muito calor por lá, disse que bebia muita água, sempre em vão.
Viajar pode ser uma resposta rítmica, térmica ou cromática aos problemas não resolvíveis da existência. Gentes se perdem em viagens, outras buscam se encontrar ou se desfazer, reinventar. Há quem viaje justamente para se emancipar ou se perder, e há viagens que são, mesmo, fatais.
Semana passada uma tia em pânico pedia ajuda nas redes sociais para localizar o filho de seu irmão, desaparecido em Amsterdam, coisas terríveis e corriqueiras que as redes disseminam. Um internauta algo perverso ou cínico opinou: “Para Amsterdam as pessoas vão para trabalhar ou para se perder”. O comentário ficou lá pendurado sob o pedido de socorro, ecoando, ecoando.
Le Corbusier, o arquiteto suíço, viajou, e viajou muito. Esteve no Brasil em agosto de 1936 e deu seis conferências. Na época participou das conversas sobre edificar um campus universitário dentro da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Que viagem, diriam os cariocas… Muita fantasia, pouca ecologia. Ainda bem que preferiram não.
Há uma cidade inventada por Corbusier no noroeste da Índia. Chama-se Chandigarh, fica aos pés do Himalaia e foi construída após a Partição entre a Índia e o Paquistão na sequência do processo de independência. A cidade é uma espécie de fina flor do brutalismo, dizem que as ruas são mais largas e mais verdes que em outros lugares do país, mas não espanta que seus moradores sustentem o mesmo tipo de orgulho e de queixa que os brasilienses. Tudo funciona, mas é artificial. Tudo é artificial, mas funciona. Tudo disfunciona e é artifício. O prédio da assembleia de Chandigarh é Brasília escarrada. Tivesse viajado mais Europa adentro e mundo afora, teríamos mais Brasílias espalhadas por aí. Fascinante e um pouco assustador.
Escritores não costumam desenhar novas cidades – à exceção de Joaquim Cardozo – mas quando se deslocam tentam colher o enigma do caos urbano, flor brotando no asfalto, vida ao rés-do-chão. De vez em quando até colhem um beijo. Cecilia Meireles também foi à Índia. Por lá tentou captar cores e cheiros em profusão epifânica. Do livro que parece ter escrito todo in loco há um belo poema que fala de ervilhas, o cheiro violento das flores de ervilha. Não conheço tal flor, mas o poema persegue o cheiro através de imagens e sons. As flores têm o cheiro violento de pássaros se esganiçando, “pássaros que dão todo o seu canto”, cheiro de cascata despenhada. É difícil saber se o cheiro violento é bom ou de algum modo terrível, como um mau presságio. Na última estrofe ela diz que as tais flores têm cheiro tão intenso que, depois de ocuparem todos os espaços públicos e privados da cidade, mandam mensagens até o fundo do rio.
Toda esta crônica para chegar ao fundo do rio. Nos últimos dias reli um livro de viagens que se aventura em trajetos consagrados da literatura e da cultura brasileira. Sem pompa mas com toda atenção às circunstancias o antropólogo angolano Ruy Duarte de Carvalho enveredou por caminhos vários que impulsionam a escrita de seu belo Desmedida. Foi publicado há alguns anos no Brasil pela editora Língua Geral. Atraído pelo que conhece e desconhece, pelo que lhe chegou aos fragmentos e pelo que leu nos livros, Carvalho viaja através do pensamento e através do Rio São Francisco – para mim essa é a parte da sua densa viagem que mais interesse desperta. No percurso em que nos envolve, o livro se transmuta em barco, canoa, balsa, porque o seu autor assume a escrita de viagens como uma viagem dentro de um rio – de informações, ansiedades, entendimento e perda de sentido. Uma passagem ali colhida relanço aqui como uma flor de ervilha no fundo de um rio: “Como é que eu ia querer comentar o Brasil para os brasileiros? Tenho andado só a ver se o explico para mim mesmo. Sei como eu mesmo olho os estrangeiros, brasileiros inclusive, que desembarcam em Angola com uma ciência pré-fabricada do que se passa entre nós e com respostas para todos os impasses que nos afligem e manietam a ação e o espírito”.