Crônica LauraErberLauraMorgado

“Não temas, vem!” grita o Carnaval com sua voz rouca e antiga, inegociável. O Carnaval tudo engole e tritura e recombina, desespero, tristeza, euforia, cansaço, medo, melancolia. Pois existe uma melancolia tropical, que exala seu fartum aos quarenta graus, que sabe dançar, cantar, que mexe e remexe com a gente.

Existe crime e castigo, existe pecado ao sul do Equador.

E existe Carnaval, e o Carnaval existindo, existe uma alegria febril de riso transcendente, coletiva, purgativa, delirante, coisa nossa, muito nossa. Não é a síntese da cultura ou das raças, mas é nosso amalgamado de gentes e sons e lantejoulas, rios de gente escorrendo através das ruas das cidades brasileiras que tudo engolem e tudo cospem, escarram.

Mas esta crônica é sobre ver e tentar pensar o Carnaval de longe, espécie de foraclusão, pois é como estar presa do lado de fora. Não uma foraclusão psi, de quem fica fora da epopeia edipiana, mas de quem está trancada fora da epopeia musical de suor, cerveja e gentes em transfusão de sentido. O Carnaval invade, emprenha, mesmo assim, quando vamos seguindo o batuque à distância.

Durante os dias deste Carnaval que passou, dei por mim visitando amiúde as ditas redes sociais, torturei-me cada dia um cadinho, lambuzei-me em imagens e palavras e sons da festa na fornalha. A expressão “rede social” para dizer Facebook, Instagram e afins tornou-se imediatamente oca e inoperante quando a rede social da festa de rua carnavalesca se impôs. Vi homens mulherizados fantasiados de frascos de esmalte e blocos de gente coberta de glitter, de uma beleza oleosa em que nenhum mau-olhado gruda. Meus olhos marejando de comoção encantada. Saudade, meu bem, saudade.

Um país tão violento que produz uma festa pacífica nessa escala está dando seu recado. Somos, sim, um país telúrico e sentimental como dizia Glauber Rocha, sem deixarmos de ser um país classista, perverso nos meios e fascista nos fins. Darcy Ribeiro cantou a letra desse nosso difícil samba de formação, a cicatriz que o Carnaval nos permite chorar em canto alegre: “Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós”.

Feito o Sertão – antiaristotélico –, o Carnaval é e não é. É turismo hardcore, é comércio, é misoginia, é exploração sexual. Mas também não é nada disso, o Carnaval é a liberdade do corpo duramente conquistada nas veias abertas da cidade ensanguentada, da cidade onde reina tiro, porrada e bomba. Recorro ao poeta arlequinal, que se debateu com sua frieza paulistana e quis fundir em alegrias e tristuras, viu no Carnaval carioca de 1923 “todas as coisas finitas/ em rondas aladas sobrenaturais”. O Rio em 1923... Minha fantasia dá um salto de tigre para trás, vejo um bondinho abarrotado, a palavra guarda-pó me dá um beijo, vejo passar meus antepassados negros, indígenas, portugueses, judeus fugidos, vejo guizos, confetes no ar, aqui de longe, suspiros arlequinais...

Quarta-feira da paixão e cinzas. O Carnaval é nossa geografia imaterial, a força que nos excede, nossa arte de evasão para dentro das entranhas das cidades que expulsam as gentes, matam, trucidam ‒ lucram com isso. O Carnaval ainda é essa inflamação coletiva, que afronta a erudição dos doutos ignorantes em matéria de viver a vida. Nas suas multifantasias e manifestações contraditórias o Carnaval instala o prazer sem máscara, o prazer-prazer, que nos permite ainda sonhar em ser um país. Também eu, querido Mário, sinto calafrios de alumbramento diante da graça dos remelexos e buduns, no meio do tecido denso dos instrumentos, dos batuques, dos chios e dos guinchos, o Carnaval é de quem trabuca, é muita labuta, é a mais divina indolência. É o que somos, o que não somos, o que nunca, o além de todo aquém que nos delimita. O Carnaval tem a força de um fantasma e é a coisa mais real. Desafia o desfilar de imagens nas telas bidimensionais, desafia a semiótica e a sociologia, a psicanálise e todos os nossos instrumentos de entender.

O Carnaval é o imperativo sinal vital, de um país recém-saído de uma espécie de coma político. O Carnaval, e isso todo mundo que está lendo sabe, desafia os ritos contabilísticos, o aniquilamento dos quereres, o sofrimento mudo, o medo surdo. Desafia a imagem que projetamos de nós mesmos ‒ de miséria e opulência, de mentiras e mercês, de dor no riso e beijo partido ‒ e o seu verso e reverso inaugurais ‒ ó quão dessemelhantes.

Pra terminar, fiquem com os bons e velhos Novos Baianos: “pelo Carnaval/ é que o homem vê/ que é pequeno e forte/ como o tamborim”.