Há caminhos que só se revelam quando se bifurcam, como no conto de Borges, ou nas encruzilhadas e impasses da vida mesma. Há estradas tão mal sinalizadas que nos induzem a tomar o caminho errado quando o trajeto se divide. Lembro a pequena onda de tensão que se instalava no nosso velho Monza quando, voltando de Belo Horizonte para o Rio no fim das férias de verão, a estrada nos empurrava para a saída que nos conduziria de volta a Minas, como um looping infinito de uma viagem que nunca chegaria ao fim. Retrospectivamente, penso que aquele pequeno trecho de péssima engenharia civil revelava uma verdade então invisível: há sempre alguma força estranha, um artifício nos empurrando de volta a Minas. Eis o tema-guia do romance que não escreverei. Há diversos romances que não escreverei se acumulando ano após anos em algum lugar de massa negativa de minha casa em Haia. Como a leiteira de Vermeer, continuo parada derramando o mesmo fio de leite estático e infinito que nunca ninguém beberá, continuo sonhando livros que nunca ninguém vai ler, sequer eu mesma.
Mas o fato de não tê-los escrito não significa que esses romances não existam. Creio que existem, sim, numa dimensão onde alguém – talvez a serena leiteira ou a menina dos grandes brincos de pérola que nos olha pra sempre com seus imensos olhos acesos –, enfim, talvez nessa dimensão alguém desfrute de tardes frugais a escrever romances que foram apenas desejados. Certeza de que lá também há filmes sendo feitos, canções sendo gravadas, é uma espécie de Jardim Suspenso da Realização. Meu outro romance não escrito: A história das cochonilhas ou Os desvios do vermelho. Seria autobiográfico, sobre uma época em que meus ancestrais traficavam cochonilhas escondendo-as dentro dos bancos da Sinagoga de Trieste. Embora baseado em fatos (ou lendas suficientemente convincentes) de minha família triestina, um tal projeto consumiria talvez 1/3 de toda a minha vida, coisa que não posso me dar ao luxo de fazer já que tenho outros romances mais urgentes para não escrever. Por exemplo, a história de um homem e de uma mulher. Deste tenho uma sinopse, escrita não por mim, mas fornecida por um dos protagonistas em post compartilhado por uma amiga ‒ a internet está cheia de coisas assim, um lixo resplandecente. Pode ser tudo fanfic, mas tem a força de um romance em estrutura de vidas paralelas. Eis portanto o resumo do romance que desejaria não escrever antes da lenda das cochonilhas que não escreverei:
Em algum lugar do Chile, uma jovem mulher está andando por aí vivendo sua vida. Em algum momento, por algum motivo que a narrativa sugere sem explicar, ela se inscreveu para ser doadora de células-tronco, sabendo que a probabilidade de surgir algum paciente compatível é absurdamente pequena. No entanto, um belo dia, mais precisamente um dia nublado no Chile, em janeiro de 2023, o seu telefone toca. Um homem na Dinamarca está sofrendo de leucemia aguda e vem sendo submetido à quimioterapia. O câncer foi derrubado. (Pequena pausa: adoro essa imagem ruim, como são ruins aliás todas as imagens de doentes-guerreiros, como se o câncer fosse uma espécie de parede de papelão a ser derrubada num golpe de karatê num filme da sessão da tarde.) Enfim, a chance desse homem evitar recidivas depende agora de um transplante de células-tronco de um doador compatível.
É uma história romanesca no sentido de que ela contém um germe de romance amoroso, uma sugestão de vidas distantes que se tangenciam. Acaso sedutor, drama da doença e seu fantasma, a latência de um enlace que pode nunca ocorrer. Será que eles vão se encontrar? Será que serão tomados por uma espécie de comoção sexual? Ou será que entre eles vai predominar aquele tipo de afeto muito terno, muito doce, embora intenso, uma comoção funda mas sem nenhuma carga propriamente erótica? Uma mulher saudável no Chile doa uma célula no presente pensando que talvez no futuro uma pessoa adoecida possa utilizá-la para se salvar. É um pouco como jogar na loteria para um desconhecido. Esse futuro de repente se materializa, e a hipotética e fantasmática pessoa existe de fato. A mulher agora precisa aumentar sua medula para ser operada. Significa que um homem desconhecido, num país muito ao norte, está mexendo dentro do seu corpo, faz suas células se multiplicarem. Quem sabe um novo gênero, biogenético-erótico? Melhor não escrevê-lo.
Por mais que eu deseje escrever um romance com uma tal estrutura, sei que ele já está escrito, existe na potência de sua sinopse que viralizou recentemente. Existe também no jardim dos caminhos que levam a Minas passando por aquele anel rodoviário malprojetado, existe como sombra real no jardim dos livros que se escrevem a si mesmos. Mas não como escrevem os robôs de agora, mas como aquelas mãos descoladas de braços, tão densas e reais, que os pintores da Renascença repetiam ad infinitum em seus exercícios, ou como as mãos mágicas de certos prisioneiros cegos, jogadores de cartas, sobre os quais já foi escrito que conseguem descobrir o naipe do baralho apenas com o toque dos dedos. Um jogador de cartas cego é quase já um romance.
Virginia Woolf tem um conto chamado Um romance não escrito. Foi incorporado ao pequeno volume Segunda ou terça. É um texto-manifesto. Embora seja uma ficção, é também uma afirmação da maneira moderna de conceber os narradores, ou A narradora moderna, ou a narração moderna como uma questão de mulheres que observam e narram seu modo específico de fazê-lo. É sobre a própria literatura e seus limites como método de adivinhação, interpretação ou representação da vida alheia. A narradora do conto se depara numa cabine com uma moça chamada Minnie Marsh, cuja vida ela começa a tentar adivinhar e ao fazê-lo vai inventando-a diante de nós. É também um conto sobre o desejo de literatura, os limites da narração, a agitação sedutora de uma vida em sua realidade imediata, o mistério da banalidade. É um conto sobre aprender a ler a vida nos olhos das pessoas, e a literatura sobre uma arte que não cura, nem salva, nem quando os romances são escritos e os livros publicados. “A vida é o que você vê nos olhos dos outros; a vida é o que as pessoas aprendem e, tendo aprendido, nunca, embora o tentem esconder, deixam de estar conscientes de – do quê? De que a vida é assim, ao que parece.”