“Minha intenção é meu destinatário. Mais ninguém.” Escreveu o poeta Emmanuel Hocquard. Outros antes dele já haviam percebido que o poema está sempre a caminho, rumando em direção a alguém, algo, ao tudo ou ao nada onde a poesia aposta todas as suas fichas. A poesia é um ritual de lançamento, lance de dados, de dardos, de flechas de indóceis carregando doçura ou desespero.
Dito de outro modo: a lírica é uma cena que se arma sobre o deslizamento dos papéis discursivos em que o eu e o tu compelem um em direção ao outro, incessantemente.
Por isso, no poema quem fala através das palavras erra, mas nunca inteiramente, mesmo quando se perde do destino ou avança cegamente sobre ele. A poesia é esse destino incerto da palavra escrita, “mirante extremo onde se goza” como escreveu Ana Cristina Cesar. A poesia lírica – que está sempre em vias de acabar, feito o Brasil, sempre morrendo e ressuscitando – é um tipo de pesquisa atenta às formas desse empuxo, não é discurso de especialista, é uma fala especial, onde tudo importa, e não importa o que seja, a importância é um valor que o poema define ao dar as cartas.
A poesia lírica convoca a pessoa desejada como se convocasse um cometa quente e veloz cruzando os céus, acreditando que ele possa atender a um tal chamado. Esse chamado que é sempre efetivo e é sempre insuficiente. Eis o estranho mirante onde se goza, jardim trifurcado, barco movido à brisa.
A poesia e o luto têm algo em comum, são assombrados pelo silêncio. Aqui por exemplo, escrevo uma crônica feita de retalhos, ideias sobre o que pode a poesia – bem diferentes são os poderes da crônica. No luto tudo arde de frio, essa labareda gélida é o sopro de claridade dos mortos. Essa população confusa que não habita lugar algum quando apenas na terra é Carnaval.
Volto à poesia toda vez que a morte vem de frente. Ela virá e terá os teus olhos, dizia Cesare Pavese. Um verso assustador. Ele também falava da morte que nos acompanha, surda como um remorso muito velho, ou um como vício louco e incorrigível.
Ela vem e come as roupas do seu amor, carrega os tecidos do corpo, todos os suspiros, as perguntas sem resposta, os cheiros, o calor. Porque o corpo, dizem os sábios Náuatle do México, é uma flor muito fresca e mortal.
O luto e o poema podem suspender o tempo torrencial, e não é pouco. O tempo dividido em 12 meses é tão recente afinal, pisamos ainda sobre a sepultura do tempo astrológico, teológico e de todos os tempos poéticos que os antecederam. Entre outubro e dezembro de 1582 o calendário deu um salto louco na maior parte das regiões onde o catolicismo predominava. Para adotar o calendário promovido por Gregório XIII a Itália passou do dia 4 ao 15 de outubro, enquanto onde hoje é a França, o dia 9 de dezembro foi sucedido pelo dia 20. Adotar o calendário gregoriano significou engolir vários dias.
De vez em quando esses tempos sequestrados reemergem. O poema é a máquina fotográfica desses momentos. Por isso o fim do mundo é o seu tema, e também os começos, e os começos do fim, o que não acaba e o que nunca termina de acontecer. O poema é o quieto animal à espreita, sempre à espera desses momentos extremos onde ninguém mais pergunta que horas são
Um poema de Yehuda Amichai fala sobre esse lugar onde esperamos o fim do tempo, salas onde esperamos o fim se consumar, abrindo portas ou falando baixinho:
Salas de espera. A sala de espera de Jó
onde ele espera a má notícia
e seus amigos sentados conversam baixinho.
A sala de espera de Moisés no deserto
onde ele anda pra lá e pra cá e não sossega por um só instante.
A sala de espera de Isaac no Monte Moriá, esperando
para avançar com a faca. A sala de espera de Sara,
na tenda antes do nascimento de seu filho,
e a sala de espera do Rei Davi no telhado.
Ele estava esperando que Betsabé saísse do banho,
então sentou-se e esperou vir Natan, o profeta,
para amaldiçoá-lo. E todos nós
esperamos com eles no ruflar de asas
e no rumor das folhas de jornal
e tosse e suspiros e murmúrios e conversas sussurradas ‒ esperamos que a porta seja aberta pelo anjo branco
e por trás dele venha a luz branca cegante.
Fiz a tradução acima a partir do inglês, de um fragmento do poema The Bible and You, the Bible and You, and Other Midrashim.
A morte engole os dias, a poesia é essa teimosia de ir buscá-los goela abaixo, a revolução também pode ser isso. Já disseram que a revolução é o salto do tigre para trás, ela também perturba o calendário, reinicia a contagem do tempo. O progresso não estaria no futuro, mas num ponto do passado que só pode ser visto desde o mirante extremo onde se goza. A poesia é a sala de espera do nada que virá sussurrando outras delícias. A crônica, na sala de espera da literatura, recolhe os seus restos, depõe os lírios, relança os fogos no ar num mundo que gravita no escuro sob o rebanho da lua, a nos vigiar.