Crônica HanaLuzia jan.23

 

No domínio dos acontecimentos do passado, é a anedota, e não a história, a arte de desencavar o tempo trazendo-o para bem perto. Como uma madeleine irrecusável, as anedotas nos aproximam dos acontecimentos longínquos criando entre nós e eles uma familiaridade irresistível. Parece que foi ontem, ou agora.

Há assuntos que ficaram por muito tempo enterrados, dando a falsa impressão de que foram trancados num espaço definido e acabado. Exigem de nós a força e talvez mesmo a coragem insolente da anedota. Não para nos fazer rir, mas para criar essa proximidade que toca o passado como coisa presente, sobretudo quando o passado não passa, vivo e morto em sua própria câmara de ecos.

Se a anedota tem o poder de desencavar subitamente o passado lançando-o em nosso colo ou como um tapa na cara, enfim, tirando-nos da posição de reféns da distância, há pessoas que desencavam coisas mesmo, objetos, ossos, palavras, bibliotecas inteiras. Profissionalmente, recebem certos nomes, ainda que sejam talvez todos movidos por uma necessidade de tocar a matéria do tempo.

Entre dezembro de 1975 e março de 1976, o casal argentino Liliana Vanella e Dardo Alzogaray enterraram sua preciosa biblioteca dentro de um poço de cal no quintal da casa onde viviam, na cidade de Córdoba. Meses depois se exilaram no México.

Oito anos mais tarde, de volta a seu país, graças a um programa de repatriação de exilados, o casal tratou de procurar a biblioteca enterrada no quintal da casa. As buscas não resultaram em grande coisa. Ao resgatar uma bolsa com um livro totalmente desfeito pela umidade, Dardo se contentou com a evidência eloquente da decomposição das obras e com o fim da biblioteca onde havia os seus Oliverio Girondo, um lindo livro de Heberto Padilla, Garcia Lorca, Guillén e Vallejo.

Décadas se passaram e os filhos do casal num gesto de bela teimosia se juntaram a uma equipe de antropologia forense e decidiram realizar novas buscas pela biblioteca dos pais. Em 2017, começaram os trabalhos de escavação. Para quem quiser saber mais, o livro La Biblioteca Roja, assinado por Gabriela Halac, Agustín Berti e Tomas Alzogaray Vanella, conta essa história através de um tecido textual de rara beleza.

Mas talvez seja preciso desencavar um pouco a história da antropologia forense na Argentina. E voltamos a 1983, quando foi eleito um novo governo constitucional, ou a um ano antes, quando a organização Abuelas de Plaza de Mayo entrou em contato com membros da Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS), em Nova York, porque precisavam de métodos confiáveis para analisar os corpos e poder identificar seus netos desaparecidos. Foram informadas então de que era possível determinar, por meio das técnicas de estudo de restos esqueléticos, se uma mulher havia dado à luz antes de morrer. Foi utilizando esse conhecimento que o pai da antropologia forense, o canadense Clyde Snow, conseguiu determinar em 1985 que a filha de Estela de Carlotto, Laura, havia dado à luz a um bebê antes de ser assassinada por agentes da ditadura argentina.

Confio, ou gostaria de acreditar, que nossa história de violências emergirá da teimosia, da coragem de tocar o passado com as mãos, da colaboração entre os saberes e não saberes mais diversos, das técnicas forenses à poesia, da arte de escutar e de se fazer ouvir ao olhar dos astrônomos, da biogenética aos pesquisadores que cantam com a água dos rios que estudam, como mostrou o diretor chileno Patrício Guzmán no filme El botón de nácar.

Nossa violência soterrada também jaz entre o grande lixo da internet. O filme Argentina 1985, lançado no ano passado, foi para mim o estopim para desencavar de minha pilha de livros o pequeno volume sobre a biblioteca roja. E um impulso forense de desencavar registros dos processos que levaram à condenação dos militares envolvidos nos crimes da ditadura também será sobre nossa democracia assombrada por mortos-vivos, restos, rostos e palavras que ainda não conseguimos enterrar. Vale a pena fazer essa escavação e, sem desmerecer o belo trabalho de Ricardo Darín como protagonista do filme, é importante ver o suor e ouvir o gaguejar no discurso final do promotor Julio César Strassera. É um dos paradoxos da acessibilidade, tudo está lá, mas para se tornar acessível é preciso mais do que pura tecnologia.