Crônica Laura WEB

O que seria do mundo se compreendêssemos o que vivemos no momento mesmo em que as coisas acontecem? Escrevo da costa ocidental do continente africano. Tudo aqui é familiar e inteiramente novo. A beleza, a pobreza, a força humana, as cores em festa nos tecidos que vestem corpos aprumados. A explosão de alegria cromática contrasta com o desbotado do casario. São muitas as casas em ruínas ou semiarruinadas. Estou no interior da Bahia, há varais de roupa e sol a pino, algumas cabras, calçadas que são boas pra conversa, pro descanso, lugares de ser e de estar.

Talvez agora esteja em Pirapora, porém caminho 10 passos e estou no centro de Havana. Viro a esquina e avisto as extensas margens do Rio Senegal, rio caudaloso cor de terra. O som das águas do rio marca presença, adensa o espaço. Há homens fazendo orações em voz alta. Suas vozes se misturam, se emendam. A paisagem sonora é quase tão bonita quanto a força do lugar. A lua observa tudo de longe, parece um sol desbotado. Eles que rezam nestas margens são muçulmanos, fazem suas preces em árabe. No espaço público quase não ha mulheres rezando. Talvez eu tenha chegado ao Senegal, ou é só um sonho. Anos de África imaginada e imaginária custam a se despregar.

Da Ilha de Gorée, a poucos quilômetros de Dakar, saíram milhares de navios europeus transportando africanos escravizados em direção ao continente americano. A expressão “tráfico de escravos” ganha outra consistência aqui.

É preciso atravessar uma terra muito seca e muito vasta para ir de Dakar a Saint-Louis, cidade peninsular e ponto-chave da colonização francesa, antigo entreposto comercial estratégico onde portugueses, franceses e holandeses fizeram muito dinheiro.

Tento me reconciliar com os clichês. Impressiona a elegância das mulheres e a dignidade com que se movem em meio ao muito pouco ou quase nada fornecido pelo poder público. Há beleza pura e muita crueza. Não sinto medo, não vejo armas. Pobreza pura. O resultado da grana que ergue, mas, nas colônias, muito mais destrói coisas belas.

Assim vamos aprendendo a destruir a nós mesmos. Hoje, uma fábrica local chamada Ciments du Sahel derruba os baobás, permitindo que o cimento siga construindo seu império feio e louco, onde o vento não sopra mais.

De Dakar a Saint-Louis são quilômetros de esqueletos de casas de alvenaria em diferentes estágios de construção. Aquilo que Lévi-Strauss disse de São Paulo – que lá tudo ainda é construção, mas já é ruína – se aplicaria aqui.

O violento processo de colonização ainda é referido por palavras burocráticas e engomadas: entreposto, feitoria, reinóis. Numa mesma frase lemos sobre os vários produtos primários exportados: goma arábica, ouro, marfim e escravos.

Uma jovem senegalesa estudante de sociologia me explica que as crianças muçulmanas aprendem a ler o Alcorão na escola, mas o ensino do árabe é as vezes bem precário, muitos não sabem o significado dos versos que repetem em suas orações, cinco vezes ao dia, obrigatoriamente.

A sedução visual da margem do rio e dos homens em prece leva inevitavelmente à imagem que as fotografias não conseguem mostrar. A de um sistema de escravidão contemporânea que torna a visita mais complexa, mais amarga. As ruas de Saint-Louis, como as de tantas outras cidades senegalesas, estão repletas de crianças mendicantes. São os chamados “talibés”, que organizações religiosas alegam cuidar enquanto lhes proporcionam ensino religioso. As crianças são levadas para Daaras, em princípio escolas corânicas mas muitas das quais atuam como uma verdadeira indústria de exploração de trabalho infantil. As famílias muito pobres do Senegal e da Guiné Bissau entregam suas crianças aos mestres religiosos chamados “Marabus” na esperança de que forneçam a elas alguma estrutura e educação. Dizem que há cerca de 80 mil talibés a mendigar pelo país...

Passa por mim a mulher mais bonita do mundo, um grupo faceiro de talibés descalços. Passam cabritos, passam táxis, passa um ônibus cheio, outro aos pedaços, passa o vendedor de café, Touba, voltando para casa, passam as costureiras da associação de mulheres, passa Bino, o vendedor de pinturas sob vidro, passa Zeus, outro pintor, passa Sokhna usando os colares estupendos que ela mesma fabrica através de processos de reciclagem engenhosos, passam os rapazes da lojinha de xerox, passam devagar, como se não precisassem passar, como se nada de fato saísse muito do lugar. Meia-noite agora, o salão de beleza está lotado, a diretora do arquivo atravessa a rua, foi comprar seu pão depois de um dia de trabalho que terminou no dia seguinte. A mulher mais bonita do mundo toma seu cafezinho. Sokhna acena e sorri um sorriso largo, de repente me sinto tão em casa, como já tivesse estado aqui numa outra vida. Não tenho como provar, mas me ocorre a certeza de que nosso jeito de sorrir veio de África. Meu coração atlântico se agita. Tento me concentrar na beleza crua do lugar, sei que de algum modo estamos saindo de um sono muito antigo.