crônica Laura nov WEB

“O mundo vai mal e digo mais, ainda não vimos tudo.” Essa é a voz de Simon, mansa, quase terna, sem sobressaltos. Simon é o dono de um brechó parisiense que leva o seu nome em grandes letras amarelas manuscritas sobre fundo vermelho. É frequentado por quem procura roupas finas e marcas raras a preços acessíveis.

Simon está sentado de jaqueta jeans entre casacos, tailleurs e gabardinas, é um sujeito simpático, bochechudo, de olhar doce e palavras sombrias sobre o futuro do mundo e de seu país, segundo ele, desgovernado, desgovernado. “E vai piorar, ainda não vimos tudo.”

O cheiro típico das roupas usadas se mistura com o ar de Paris já que a porta fica quase sempre aberta nesta época do ano. Ainda que pareça totalmente absorto em pensamentos nada otimistas, Simon observa os clientes com olho clínico e sabe identificar imediatamente tamanho e formato ideais de ternos e sobretudos para seus clientes. Numa outra linha de ação, de quem realmente assume o trabalho como um métier, quando acredita que uma peça vestiria perfeitamente tal ou tal corpo de tal ou tal cliente, ele a separa e na primeira oportunidade, faz a recomendação.

Simon’s é quase um pequeno clube de aficionados por roupas clássicas, mas é também visitado por quem gosta de uma boa conversa, sem obrigação de comprar.

Faz sol em Paris e o frio ainda não se instalou realmente. O Brasil também é um assunto aqui. Segundo Simon, a vitória de Lula será boa a curto prazo, mas talvez ajude a fortalecer a extrema direita aloprada que na oposição tenderá a se organizar ainda melhor.

Ainda não vimos tudo, é verdade. Mas digo a ele que a campanha eleitoral brasileira inclui satanismo na maçonaria. Parece que tudo o que há para ver já transcendeu nossa capacidade descritiva, Simon.

Com a mesma voz doce, mas agora num tom de derrota mais grave, Simon diz que talvez não possa vir trabalhar na próxima semana. Há uma greve em curso em diversas refinarias francesas e os efeitos já podem ser sentidos em postos de gasolina de algumas regiões, que tiveram de fechar por falta de combustível. As filas de motoristas se multiplicam e o governo não quer reconhecer a crise, minimizando a seriedade do problema já instalado.

Para conseguir a roupa fina usada pelas famílias ricas de Paris, ele precisa madrugar e atravessar a cidade de ponta a ponta, chegando antes dos concorrentes e com maior margem de escolha das peças. Por isso a lojinha no Boulevard Arago só começa a funcionar às duas.

Nos brechós, padarias e repartições públicas da Europa, a espera pelo inverno tem sido tensa. As contas de energia deram saltos medonhos e embora alguns governos tenham anunciado medidas de controle do aumento do preço do gás, muitas pessoas já sabem: em breve irão pagar mais para aquecer suas casas do que pagam pelo aluguel.

O mundo dá voltas, as voltas que o mundo dá... Ainda não vimos tudo. Se na França há governo desgovernante, no Brasil corremos o risco de habitarmos uma paisagem política à moda húngara, com o agravante do armamentismo trumpista e da velha e persistente violência de Estado à brasileira.

O coração de Simon não está seco, mas ele parece cansado. Seu olhar abarca os acontecimentos com uma espécie de melancolia moral. Ele sabe que há coisas piores, não visíveis, acontecendo dentro da noite. Sempre há. Simon, a seu modo, já está vivendo no tempo da absoluta depuração. Aquele tempo que Drummond nos fez perceber por trás das conversas travadas dentro dos edifícios, nos brechós, ônibus, botequins. E não adianta nem morrer, dizia o Carlos. Estamos no “tempo em que a vida é uma ordem”. Estranha ordem. A vida apenas sem mistificação, é coisa fina mas suada, meio fedida, feito roupa usada com cheiro de outros corpos, que vestirá um desconhecido no inverno que não tardará.

Depois das últimas palavras me arrependo um pouco. Gostaria de ter escrito sobre assunto mais ameno, gracejos, relaxos, poemas. É quando recebo uma mensagem de um amigo dizendo simplesmente: “olha a lua”. No trem de volta para minha nova cidade holandesa, afasto a cortina e constato, é verdade, hoje está linda, mesmo. A gente precisa ver o luar.