Alguma coisa acontece na nossa canção, que só um toque de línguas sabe dizer. Pan-Américas pós-utópicas, um canto transpossível, velho e novo, nosso. No que você está pensando? Na irrupção terna do espanhol no português na recente cena musical. É um namoro, remate de males? Tentar sair do pântano de solidões chamado Brasil? Deslocar o foco da profunda derrota em direção aos vizinhos que se erguem pouco a pouco?
Quando quase nada é odara ou age como antídoto, surge um jeito, um som, um dom (de iludir?) tocando nossos corações anoitecidos. Não pra macerar melancolia – a indústria já mercantilizou a depressão da época até o enjoo –, mas puxando os fios muito finos e meio soltos de nossos quereres sempre afins. É bom? Tanto. Mas e agora?
A história recente do país, porém, não se mostrou um carro alegre, tal como foi cantado por Chico e Milton, num beijo de latinoamérica que ainda ecoa vindo de longe. Porque, como disse o outro, a vida é real e de viés, o primeiro ímpeto é hesitar antes de entrar nas malhas da alegria que vêm numa canção. O não contra o sim e o talvez.
Mas a própria letra fura o cerco, pois meu maior desejo também “é viver por enquanto/ Um pouco mais vivo”. Não há mais lugar para doces bárbaros, nem há como sustentar em barbárie um nome. Mas ainda somos os egressos de um país barbarizado tentando lamber os últimos torrões de uma candura. Bala Desejo é o nome da banda que escuto enquanto escrevo e escrevo para tentar escutar o que se diz no que se canta.
A nova canção de Chico, Que tal um samba?, se insere nessa paisagem de oscilações – entre pavor e a necessidade de alento –, canção simpática, talvez um bom sopro, apesar do efeito um pouco redundante, colocando-se rente demais à conjuntura politica do cenário pré-eleições e criando para si uma cena de leitura apertada. Talvez a música amadureça com o tempo e descolamento contextual.
No campo das sensações e imagens menos classificáveis dentro do espectro político do derrotismo/triunfalismo, há o que vem no beijo de línguas – contato quente entre português e espanhol. Acontece em canções da Bala Desejo, banda carioca surgida durante a pandemia, formada por Julia Mestre, Dora Morelenbaum, Zé Ibarra e Lucas Nunes. Mas há também transfusão geopoética em Sueño con serpientes de Duda Brack, no disco Sal gruesa que Ava Rocha gravou com os colombianos Los Toscos, e na parceria recente de Tom Zé com Douglas Diegues, poeta conhecido por sua prática poética de portunhol selvagem e na identidade de poeta da tríplice fronteira.
Num ensaio de 1988, Silviano Santiago destrinchava a relação entre poder e alegria ao tratar da literatura brasileira de ficção. Dizia sobre o modelo ficcional pré-1964, em que predominava o tema da exploração do homem pelo homem, que naquela produção “otimismo e utopia se aliavam para mostrar a vitória definitiva das forças de esquerda”. Depois do golpe, teria havido um abandono daquela questão, em direção a uma literatura interessada em entender os meandros do poder, numa quase obsessiva atração pelas dinâmicas de opressão, micro e macro.
Não nos sobrou otimismo edificante nem utopia capaz de fazer frente ao massacrante jogo do poder em que o país se vê amarrado. A esquerda, embora seja nossa única via, encurralada pelo fisiologismo político não é motivo de orgulho triunfal, nem inspira canções de protesto. Quando muito, gritos de socorro. Esperamos dela que funcione ainda como um último pedaço de lenha a que nos agarraremos com força antes da queda de um rio em cachoeira.
Mas, porém, todavia e contudo, ainda há alegria, ou desejo dela, brotando no Brasil. E com requintes de ternura. Vem junto nossa dificuldade de saber como senti-la, sustentá-la, redizê-la. Enquanto a prosa de ficção se dedica a denunciar o status quo, de forma mais ou menos efetiva, e apenas de leve parece querer dialogar com o modo de renovação literária dos vizinhos, parece caber à música tecer respostas a essa alegria latino-americana, que apesar de tudo, de repente se insurge. E nos cativa, inapelável, numa letra que fala de um céu, imenso jardim, “coisas que eu sigo a procurar”.
Cantada com maciez que concede aberturas no sentir e no sentido, de tabela nos confronta com questões existenciais (e claro, éticas, num sentido mais fundo) de quem atravessa uma época em quase tudo vergonhosa num país que testemunha sobre própria implosão.
O que busca a canção brasileira ao abarcar a língua irmã, seu sussurro, sua graça? Não é somente a língua que fala, são os sopros, o ritmo, o ípsilon.“Soy bala deseo” ecoa, é claro, em Soy loco por ti América e em sonhos de contato e de afluência, esforços, estratégicos ou intuitivos, pouco importa neste caso, para “deixar de ser o que não somos”, como queria Aníbal Quijano, sendo o que somos não um cerne duro, mas o que queremos ser e o que não fomos, em franca troca de sinais. Nem nobres, nem anjos, nem intelectuais, nem surfistas.
Já havia acontecido antes, claro. Fico com um exemplo. Nos anos 1970, o saudoso Manduka gravou no Chile um disco chamado 1972, também conhecido como Brasil 1500. Nele há uma canção, Naranjita, que lembra muito no tom e na ternura e no deslizamento suavíssimo entre as línguas o que faz a banda Bala Desejo em Passarinha, que escuto enquanto escrevo e que escrevo para reaprender a escutar nas margens da alegria.
Se, como captou Silviano Santiago, a literatura pós-1964 desviou-se do ethos artístico que operava pela via negativa, da crítica “uma faca só lâmina”, abrindo espaço para o deboche, para o desbunde, para a paródia e um pouco de gozo em meio aos dissabores e desprazeres, os músicos e letristas de agora talvez busquem reerguer a língua numa transfusão de sonoridades capaz de liberar outros afetos, texturas, a bruta e confusa flor do querer, passarinhas, se tiver asinha, não corta.
Nas idas e vindas entre a candura e o espanto, entre escrever o texto e ouvir uma canção, uma lembrança volta. Conheci Manduka em Petrópolis numa tarde chuvosa. Ele tinha um papagaio jazzista a quem tinha ensinado a fazer música. Isso faz tempo. Vê-los cantando juntos foi das coisas mais lindas que me coube presenciar.
Como dizia o Rosa, “alegria mesmo era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma”.