Naquela época, meu mundo digital se resumia a jogos narrativos, tipo King’s Quest, e um uso bem-limitado do Word, que ainda levava horas e mais de 20 disquetes para ser instalado. O computador parecia uma pequena caixa de promessas, um animal ainda dependente de processos lentos e em geral falhos. Quem não se lembra do gostoso clique de quando o disquete era engolido de fato pela máquina e começava a ser lido?
Yahoo, diziam meus colegas, era um jeito sensacional de você fazer coisas na internet. Eu não entendi nada. Diziam que era preciso “entrar no endereço” e para mim um endereço não era um lugar onde você entrava, como se entra numa casa ou numa caixa. Mas então alguém disse que tinha recebido poemas de Borges por e-mail. “Recebi do meu tio vários poemas de Borges por e-mail”. Uau. E eu nem sabia o que era e-mail, mas Borges foi a senha do portal para o mundo dos escambos virtuais que nunca cessaram.
Uns 10 anos antes, frequentava uma loja de locação de jogos de Atari onde havia um cartaz de propaganda dos computadores nacionais Cobra: “Computador é que nem petróleo: É perigoso depender dos outros”. Para a criança que eu era, a frase era misteriosa e se misturava com o cheiro de Bom Ar e ar condicionado daquela loja de subsolo.
O primeiro e-mail foi enviado em 1971 pelo engenheiro Ray Tomlinson, e era uma mensagem para ele mesmo. Tomilson constatou que o telefone não era assim tão incrível, queria criar um sistema onde a pessoa pudesse receber uma mensagem sem ter de recebê-la na hora em que a mensagem chegasse. “Não havia uma maneira realmente boa de deixar mensagens para as pessoas. O telefone funcionava até certo ponto, mas alguém tinha que estar lá para receber a chamada. E se não era a pessoa que você queria, era um assistente administrativo ou um serviço de atendimento ou coisa parecida”. Assim surgiu a ideia de deixar mensagens numa caixa de correio que ficava dentro do computador. A primeira mensagem de Tomlinson não dizia nada, mas a invenção era digna de um conto de Borges.
Kafka também pensou em inventar uma máquina de mensagens instantâneas para se comunicar com Felice, isso na época em que ele ia várias vezes por dia ao correio e as cartas entre os dois deviam se cruzar nas estradas que iam de Berlim a Praga.
Durante os anos noventa eu praticamente só me correspondia com meu avô de mais de noventa anos e com poetas brasileiros e latino-americanos com quem se estabeleceu uma intensa troca de poesia, bastante importante pra mim naqueles anos. Alguma arqueóloga versada em internet terá de repassar esse material certamente relevante para entender o circuito da poesia naqueles anos. Isso tudo foi antes dos emojis, quando o Facebook apareceu tudo mudou. Também pra pior.
Em 2015, o emoji conhecido como “Face with Tears of Joy”, foi escolhido pelo Dicionário Oxford como a “Palavra do Ano”. Não era exatamente uma palavra – a rigor era um pictograma – mas foi escolhido por um dos dicionários mais importantes do mundo. Curiosamente a escolha não suscitou grandes queixas por parte dos guardiões do saber tradicional (acadêmicos, professores, guardiões da língua).
Os primeiros emojis foram criados em 1999 pelo artista japonês Shigetaka Kurita. Kurita trabalhou na equipe de desenvolvimento do i-mode, uma plataforma inicial de internet móvel da principal operadora de telefonia móvel do Japão, Docomo.
Antes dos emojis, existiam emoticons, que são as expressões faciais feitas apenas com sinais de pontuação. Os primeiros emoticons apareceram em 1881 na revista Puck. A revista publicou quatro “carinhas”: alegria, melancolia, indiferença e espanto.
Ninguém diria que em 2022 um homem húngaro chamado András Arató se tornaria uma sensação no Brasil depois de transformado no sticker e meme do “chorrindo”, uma emoção tipicamente brasileira da época em que nos tocou viver.
Todo esse preâmbulo é fuleira escusa pra confessar que quando estou saudosa do Brasil – não há remédio; por pior que esteja, o Brasil é insubstituível – visito um grupo no Facebook onde ninguém envia Borges, mas faz rir dobrado por segundos. O Brasil que deu certo, onde tudo que deu errado é bisonho, mas verdadeiro ou interessante a seu modo. A vida como ela é, complexa, no topo está a cereja de mamão da nossa alma paradoxal, que concentra a seiva densa do nosso desespero: ela brilha como um personagem de Bolaño que ri do seu próprio choro no fim de um conto violento.
Para quem preza o tédio, há uma página borgeana na internet que publica todo dia há anos o mesmo retrato (desenhado) de Max Stirner, chama-se The Same Portrait of Max Stirner Every Day. Hoje, o melhor da internet é ser esse arquivo imenso e desordenado de nossas aberrações, pensamentos, reações apressadas, comentários que nos autoexplicam em nossas mais intensas e profusas contradições. Saravá.
Outro dia vi uma que me sequestrou de todas as tarefas do dia por talvez uma hora, uma postagem com apelo opinativo: mostrava uma mísera troca de mensagem no zap entre um cara e uma moça. “Teria como racharmos a gasolina linda? Porque tu mora um pouco longe. Aí eu te busco e te deixo aí. Não tô tão forte assim de grana. Claro, se isso não for um problema pra vc.” Foram mais de 7 mil curtidas e 3 mil comentários, majoritariamente feitos por mulheres, e de uma riqueza sócio-psico-literária fascinante. Da mulher que acha um abuso de carioca malandro até a que reclama das mulheres que só querem sair com homem rico, incluindo as feministas que acharam tudo muito tranquilo e que o cara foi honesto em dizer que não tem grana, as que ponderaram dizendo que ser honesto sobre a situação financeira é uma coisa, mas pedir pra rachar a gasosa no primeiro encontro é encosto, que se ela aceitar ele não vai respeitar mesmo, e ainda a que disse que no Brasil tá dureza mesmo, tem que rachar o tanque, outras sugeriam que ele era preguiçoso e podia pedir grana pra um amigo, uma analisou o “minha linda” como sinal de ardil e embromação, outra completou dizendo que aquele linguajar era típico de cafajeste, chegou uma pra defender o rapaz dizendo que a gente nem sabia exatamente qual a distância dessa carona. O Brasil não deu certo, mas é rico em suas camadas de realidade abertas ao debate. “Mulheres, dêem sua opinião”, era a chamada do post discutido em cascata analítica de ataque, defesa e indignação. Nem Borges veria tantos caminhos que se bifurcam.