Na imagem há uma iguana, parada ao sol. É de manhã ou talvez seja o fim do mundo, dá pra sentir o halo de calor emanando de cada rocha da paisagem árida. Subitamente a iguana é tocada pela ponta do focinho de uma cobra, e sai em disparada. Assim começa uma sequência de fuga desesperada numa velocidade fascinante. A iguana é incansável e as serpentes também não desistem. Surgem duas, três, quatro serpentes, vindo de todos os cantos velozmente mas, em ritmo constante, a iguana corre, salta, segue em frente, vai, vai, vai. Do desespero é que surge aquela energia de fuga. De dentro das pedras surgem mais serpentes em coreografia harmônica enrodilhando a iguana num mesmo nó assustador. Será mesmo o seu fim, morte por estrangulamento na certa.
As serpentes são hábeis mas a iguana é mais tenaz! Leve e ligeira feito um azougue ela de repente escapa por entre os corpos enredados, saltando para fora da argola mortífera, questão de segundos que a câmera lenta nos permite fruir e fruir. E corre, corre saltitando enquanto das rochas não param de brotar serpentes decididas a abocanhá-la, a iguana pula abismos, as cobras despencam, outras surgem do nada, parece um pesadelo, parece o Brasil, e assim torcemos para que no último segundo ele escape dos horrores sem fim, feito uma iguana leve na paisagem tórrida.
Escrevo de Budapeste. Aqui também temos nepotismo, clientelismo, favoritismo e falcatruas mil, tem até um bilionário, László Bige, conhecido como o rei do fertilizante. O país só conseguirá escapar da nefasta repetição do cenário político atual se a iguana conseguir sair em disparada, dar o seu salto vivificante. Caso contrário, o país entrará no quarto ciclo de Orbán.
Uma grande manifestação foi organizada no dia do feriado nacional mais importante para o país, a não muitos quilômetros da grande manifestação dos apoiadores do atual primeiro-ministro. Embora a coalizão que tenta eleger Márki-Zay abarque um espectro vastíssimo, que não exclui políticos da direita tradicional, o lema dos cartazes e o refrão da música que as caixas de som, aliás excelentes, emitiam era: Todo poder ao povo. Imagina… Imagina se alguém solta um jingle desses numa campanha brasileira! O país inteiro entra em surto anticomunista. Foi uma manifestação bela e, para quem cresceu no Rio de Janeiro, curiosamente tranquila. A polícia pouco presente, nenhum sinal de briga ou confronto. Em solidariedade aos ucranianos, muitos budapestinos portavam fitas de cetim azuis e amarelas amarradas no braço.
Ficamos o tempo todo parados às margens do Danúbio. Mais parados que a iguana do primeiro parágrafo. Explicaram-me que é assim mesmo, e é assim porque as manifestações pró-Orbán adotaram a performatividade de procissões e marchas, então a oposição resolveu fazer o contrário e manifestar-se parada. A continuidade entre as duas fica por conta das bandeiras nacionais, onipresentes. Disputa-se aqui ideias de nação: uma cleptocracia embebida no mito magiar e um país com vocação cosmopolita, cravado no coração da Europa Central, que deveria atender melhor às expectativas democráticas da União Europeia. Era isso que gritavam os cartazes naquela manifestação de pessoas paradas no mesmo lugar, de pé, firmes, com cartazes sobre o poder do povo que fariam qualquer marqueteiro brasileiro arrepiar carreira feito uma iguana louca.
Há uma guerra não muito longe. Mais de trezentos mil ucranianos, alguns deles de origem húngara, entraram no país desde o dia 24 de fevereiro. Orbán já disse que os ucranianos são bem-vindos, mas que pro pessoal não-branco e não-cristão o melhor é arrumar logo um jeito de voltar pra casa.
Há uma guerra midiatizada pertinho de nós. Engole nosso ar, penetra em nossos ouvidos, feito o chumbo derretido que Maria Mutema despeja nos ouvidos do marido no Grande Sertão. Há sempre uma guerra não muito longe e uma notícia que nos tira o ar. Há sempre algum tipo de guerra. São todas sinistras. Um ator esbofeteia outro no palco, depois chora, as pessoas se dividem entre apoio comovido e horror exaltado. Uma música vira a mais tocada e vista da internet. Um ministro cai. A mídia muda de assunto e a guerra segue seu curso, sem heróis, com o grande fedor que a guerra exala, e crianças desidratando. “As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios”, escreveu Ana Cristina Cesar.
Virginia Woolf também acreditava na força das mulheres e em sua importância para impedir as guerras e a fome insaciável das vinganças. Vislumbrava um mundo em que as mulheres não deveriam mais parir e educar meninos para virarem soldados e matarem os filhos desconhecidos de outras mulheres. No Natal de 1914, as mães da Inglaterra se organizaram para enviar uma carta aberta às mães alemãs e austríacas. É uma aula de diplomacia. A idealizadora da ação foi a ativista Emily Hobhouse, que conseguiu juntar, em plena guerra, a assinatura de outras cem sufragistas. Antes da Primeira Guerra, ela se destacou trazendo à tona, junto aos seus conterrâneos, o escândalo dos campos de concentração britânicos na África do Sul. Campos construídos para encarcerar bôeres e civis africanos.
A carta encabeçada por Hobhouse começa dizendo que celebrar o Natal naquele ano terrível seria uma piada grotesca. E que, embora as signatárias da carta acreditem e defendam as relações pacíficas entre as nações, seus filhos continuam a ser enviados para odiar e matar os filhos de outras mães. E isso tortura o coração delas também. Diz, para aliviar essas mães no território do inimigo, que estão trabalhando para aliviar a dor dos soldados feridos, e que esperam que elas façam o mesmo com os soldados britânicos do seu lado. E conclui, “Estamos com vocês na irmandade da dor”.
Não eram apenas belas palavras de conforto. Hobhouse era enfermeira e pacifista, atuou em mais de uma guerra para garantir os direitos humanos dos combatentes. Três meses depois, chega uma resposta assinada por 155 feministas austríacas e alemãs, onde se lê: “esta carta confirma o que já prevíamos, que as mulheres de países em guerra, mesmo com todo amor, devoção e fidelidade ao seu país, podem ir além, pois mulheres realmente civilizadas nunca perdem a humanidade”.
SOS Mariupol.